Pacientes com beta-talassemia enfrentam desafios do diagnóstico ao tratamento

As falhas no Sistema Único de Saúde (SUS) criam situações desafiadoras para pessoas com doenças ultrarraras, como é o caso dos pacientes com beta-talassemia. O tema foi debatido por especialistas em saúde e políticas públicas no webinar promovido pelo Estúdio JOTA, em 25 de setembro. Durante o encontro, os convidados discutiram os desafios estruturais enfrentados pelo SUS e da urgência na incorporação de novas tecnologias para o tratamento da beta-talassemia, bem como as barreiras enfrentadas por cerca de 1,2 mil pessoas diagnosticadas com a condição no Brasil – segundo dados oficiais do SUS.

O debate contou com a participação do oncologista e ex-ministro da Saúde, Nelson Teich; Monica Verissimo, hematologista e consultora técnica da coordenação geral de sangue e hemoderivados do Ministério da Saúde; o deputado federal Lula da Fonte (PP-PE); e Eduardo Fróes, paciente e presidente da Associação Brasileira de Talassemia (Abrasta).

A beta-talassemia é uma doença hematológica genética que afeta a produção de hemoglobina, causando anemia crônica e complicações multissistêmicas, com diagnóstico dividido entre menor, intermediária e maior, de acordo com a gravidade da condição. É tida como ultrarrara por afetar até uma em cada 50 mil pessoas nascidas. A discussão ganhou relevância com a recente avaliação do luspatercepte pela Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no Sistema Único de Saúde (Conitec), no dia 3 de outubro.

Apontada até o momento como a primeira terapia em mais de uma década que atua na eritropoiese ineficaz (processo fisiológico de produção e maturação dos glóbulos vermelhos que ocorre principalmente na medula óssea), a medicação pode reduzir a necessidade transfusional e melhorar a qualidade de vida dos pacientes.

Tratamento padrão e gargalos no SUS

O tratamento padrão para pacientes com a forma grave da doença, geralmente iniciado na primeira infância, envolve transfusões de sangue regulares de concentrado de hemácias, associadas à terapia de quelação de ferro (TQF) utilizada para controlar o acúmulo de ferro decorrentes das transfusões. A transfusão de hemácias deve ser adequada, com fenotipagem e filtro, e manter a hemoglobina em níveis mínimos de 10 a 10,5 g/dL, para inibir a produção inadequada de glóbulos vermelhos que a talassemia pode causar.

Apesar dos tratamentos estarem incorporados ao SUS, o acesso ainda é marcado por dificuldades. O presidente da Abrasta, Eduardo Fróes, descreve o tratamento padrão – transfusões regulares e quelação de ferro – como “falho” e “desumano” em determinadas regiões do país. Entre os principais obstáculos, destaca-se a dificuldade de acesso a exames cruciais, como a ressonância magnética T2*, exame específico para talassemia que identifica a quantidade de ferro acumulado no coração e no fígado, sendo fundamental para orientar a conduta terapêutica.

Além disso, embora o Protocolo Clínico e Diretrizes Terapêuticas (PCDT) tenha sido atualizado, a terapia combinada com dois tipos de quelantes, essencial para grande parte dos pacientes, não está disponível em todos os estados, o que já resultou em comorbidades e até mesmo em óbitos evitáveis.

A falta de estrutura e o impacto geográfico representam barreiras críticas no acesso ao tratamento da beta-talassemia. Pacientes que vivem em áreas remotas ou em situação de vulnerabilidade social enfrentam dificuldades físicas e financeiras para acessar os centros de tratamento. Fróes descreveu a realidade enfrentada por pacientes em Belém do Pará, onde alguns pacientes chegam a demorar “três, quatro dias de barco para poder fazer uma transfusão de sangue e acessar o Hemocentro”. O deputado federal Lula da Fonte confirma que “o tratamento da talassemia é um gargalo, sobretudo, do Estado”. Ele lamenta que em seu estado, Pernambuco, pacientes do sertão chegam a percorrer 800 quilômetros até Recife, para receber atendimento adequado.

Além das barreiras de acesso, os pacientes com beta-talassemia também enfrentam o desafio da ausência de abordagem multidisciplinar, o que compromete diretamente a qualidade de vida e a produtividade. Fróes compartilhou a própria dificuldade: “Chego em um cardiologista e falo que tenho talassemia maior. Ele fica surpreso e diz que não sabe como manejar a talassemia, e nem o que eu preciso fazer.”

Para Nelson Teich, é impossível melhorar o cuidado de doenças complexas e ultrarraras isoladamente. Ele ressalta que o SUS opera com um gasto per capita muito inferior ao de países de referência (R$ 2.400 no Brasil em 2023 versus R$ 21 mil no Reino Unido, por exemplo), e que, por isso, é necessário o uso dos recursos de forma “absolutamente eficiente”. O oncologista defende a criação de um instituto capaz de mapear as necessidades da sociedade – “os visíveis e os invisíveis” – para garantir que as alocações de recursos e as estratégias sejam baseadas em dados e não apenas em mobilização midiática. “Sem dados, você discute uma ideia e não o problema”, completa.

O ex-ministro da Saúde ainda alerta que o modelo de avaliação tecnológica da Conitec é ultrapassado, pois considera a “disposição para pagar” em vez da “capacidade para pagar”. Ele usa como exemplo o fato de que medicamentos foram incorporados, mas o financiamento não foi garantido, o que impede o acesso efetivo dos pacientes. Por isso, ele defende que a incorporação de tecnologias deve ser vinculada à certeza do financiamento.

“O modelo utilizado hoje de avaliação tecnológica é um modelo que eu considero ultrapassado, que existe há 50 anos”. A declaração foi feita em resposta à pergunta sobre os desafios associados às análises econômicas para condições ultrarraras e como equilibrar custo-efetividade com a urgência dos pacientes.

Monica enfatiza que toda incorporação de uma nova tecnologia exige estudos e um comprometimento amplo. “Os envolvidos no acesso a uma incorporação têm de estar comprometidos não só com a sociedade civil, políticos, médicos e profissionais da saúde, mas principalmente com os pacientes. Isso garante uma incorporação adequada, no momento correto, para que as pessoas tenham acesso a uma nova medicação.”

Ainda sobre os gargalos, ela relembrou um dos princípios fundamentais do SUS, de oferecer soluções para todos. “A saúde é direito de todos e temos que oferecer o melhor para cada paciente. Então, a ação tem que chegar no paciente, no caso, no portador de talassemia.”

Lula da Fonte diz que o Poder Legislativo tem papel essencial na garantia orçamentária para que as políticas públicas cheguem à ponta. Como exemplo, ele cita o Projeto de Lei 3736/2020, que visa ofertar testes especializados de triagem genética da globina, essenciais para o diagnóstico precoce da talassemia.

Avanços e a incorporação de novas terapias Apesar dos desafios, novas terapias farmacológicas capazes de modificar o curso da beta-talassemia têm surgido. O luspatercepte é a primeira terapia até o momento aprovada no Brasil. 

A hematologista e consultora técnica da coordenação geral de sangue e hemoderivados do Ministério da Saúde, Monica Verissimo, explica que o medicamento que já está disponível no Brasil é uma terapia que amadurece as células e aumenta a hemoglobina, podendo reduzir a necessidade e a frequência de transfusões.

A medicação, já aprovada pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), foi submetida à avaliação da Conitec para incorporação no SUS. Fróes, que teve acesso ao tratamento com luspatercepte via convênio, relatou ser “indispensável que essa tecnologia esteja disponível para todas as pessoas”.

“Hoje eu faço um concentrado de hemácias a cada 15 dias, três semanas. Antes eu fazia três concentrados de hemácias”, descreve. Além da redução transfusional, o paciente conseguiu eliminar o acúmulo de ferro hepático, diminuindo o risco de complicações futuras.

Monica Verissimo detalhou que a Coordenação Geral de Sangue e Hemoderivados tem atuado para sanar os gargalos. Entre as ações, está a atualização da diretriz para manejo da sobrecarga de ferro para incluir a terapia combinada de quelantes, que aguarda publicação, e a construção de uma linha de cuidado e uma diretriz específica para talassemia, separada do protocolo de anemia falciforme.

Fróes concluiu que, embora tenha havido muitos avanços nos últimos 20 anos, houve uma estagnação que precisa ser rompida: “Paramos e agora é hora de retomarmos esses avanços”. Lula da Fonte reforçou que o objetivo final é garantir que a saúde, direito constitucional, chegue efetivamente à população: “Temos de estar cercados de especialistas como os que estão nesse painel para tratar todas as pessoas com talassemia e garantir o acesso à saúde.”

A incorporação do luspatercepte, cuja consulta pública na Conitec está prevista para outubro, é vista pela comunidade médica e de pacientes como um passo crucial para evolução do tratamento da beta-talassemia no Brasil.

O evento foi realizado pelo Estúdio JOTA, com patrocínio de Bristol Myers Squibb e contou com a mediação de Vilhena Soares, repórter de Saúde do JOTA.

Assista ao evento na íntegra:

Nota Editorial

Este texto foi produzido com apoio de ferramentas de inteligência artificial e revisado por nossos editores, garantindo rigor e qualidade editorial do JOTA.
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