O que a conclusão da ADPF 709 ensina sobre processos estruturais

Em 2020, o mundo enfrentava uma de suas maiores crises: a pandemia de Covid-19. Ainda que o vírus ameaçasse todas as pessoas, alguns grupos eram especialmente vulneráveis. É o caso das comunidades indígenas, principalmente os Povos Indígenas Isolados e de Recente Contato (PIIRC).

Diante da ameaça existencial a essas comunidades, a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), juntamente com alguns partidos políticos, ajuizou a ADPF 709 em 15 de julho de 2020.

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Em síntese, os autores pediam que o STF determinasse: (i) a criação de barreiras sanitárias para a proteção dos PIIRC; (ii) a criação de Sala de Situação acompanhar a crise sanitária; (iii) a adoção das medidas para a retirada dos invasores de terras indígenas em estado crítico; (iv) que os serviços do Subsistema de Atenção à Saúde Indígena (SasiSUS) fossem imediatamente prestados a todos os indígenas no Brasil; (v) a elaboração de plano de enfrentamento da Covid-19 em indígenas.

Ao apreciar os pedidos cautelares, em 5 de agosto de 2020, o tribunal atribuiu caráter estrutural ao processo e determinou a adoção de três conjuntos de medidas. No primeiro grupo, com medidas destinadas aos PIIRC, estabeleceu-se a criação de barreiras sanitárias e a instalação de Sala de Situação.

No segundo grupo, dirigido aos povos indígenas em geral, previu-se a elaboração e o monitoramento de Plano de Enfrentamento da Covid-19, a extensão dos serviços do SasiSUS aos povos indígenas não aldeados e a adoção de medidas emergenciais de contenção e isolamento. No terceiro grupo, determinou-se a retirada de invasores de terras indígenas em estado crítico.

Agora, cinco anos depois, o primeiro processo expressamente reconhecido como estrutural no STF é concluído. O tribunal, por unanimidade, extinguiu a ação, com resolução de mérito, determinando a tramitação autônoma da Pet 9.585, para conclusão das duas últimas desintrusões, e a implementação de medidas de consolidação.

Para compreender a importância desta ADPF e o que ela ensina sobre a experiência dos processos estruturais no STF, é importante analisar três aspectos: (i) quando encerrar o processo estrutural; (ii) a efetividade da ADPF 709; (iii) a consolidação dos avanços obtidos.

Quando encerrar o processo estrutural

 O processo estrutural tem como principal objetivo transformar um estado de coisas em grave desconformidade com a Constituição, responsável pela violação crônica e generalizada de direitos fundamentais. A correção de tal situação é complexa e envolve a reformulação de políticas ou instituições públicas. Por isso, há sempre a dúvida sobre quando deve ser encerrada a supervisão judicial[1]. Em seu voto para concluir a ADPF 709, o ministro Luís Roberto Barroso indica alguns pressupostos e critérios para a conclusão do processo estrutural.

Primeiro pressuposto: o processo estrutural não busca alcançar uma realidade perfeita, na qual todas as violações aos direitos fundamentais e à Constituição foram totalmente sanadas[2]. Não se busca uma política pública perfeita, tarefa que seria inviável de ser realizada pelo Judiciário. O esforço para continuamente aprimorar políticas ou instituições públicas cabe principalmente ao Executivo e ao Legislativo. Segundo pressuposto: o processo estrutural deve ser encerrado quando as instituições responsáveis pela solução do problema tenham saído da inércia, corrigido as principais falhas de atuação e, por consequência, estejam atuando adequadamente para a solução do problema.

Partindo desses pressupostos, o ministro indica três perguntas que precisam ser respondidas para identificar o momento adequado para encerrar o processo estrutural: (i) quais os principais problemas estruturais identificados no processo? (ii) quais soluções foram implementadas para resolvê-los? (iii) há indícios concretos de que as instituições constitucionalmente responsáveis estão adequando a sua atuação e conseguirão lidar com os desafios existentes?

A efetividade da ADPF 709

Até aqui, a ADPF 709 foi o processo estrutural mais efetivo no STF. Entre o seu ajuizamento e outubro de 2023, os principais resultados obtidos foram:  (i) a inclusão das comunidades indígenas no grupo prioritário para a vacinação contra a Covid-19; (ii) a expansão do SasiSUS para indígenas aldeados e não-aldeados durante a pandemia; (iii) a instalação de barreiras sanitárias dos PIIRC; (iv) a criação de Sala de Situação para acompanhar os desafios da saúde indígena; (v) o reconhecimento da legitimidade ativa da Apib para ajuizar ações do controle concentrado.

Em 9 de novembro de 2023, a ADPF entrou uma nova fase. Nesse momento, a ação buscou fortalecer o SasiSUS e fazer com que a decisão sobre a desintrusão das TIs críticas fosse cumprida. Como apontado pelo ministro Luís Roberto Barroso, os principais resultados desta fase são: (i) a definição do público-alvo da política de saúde indígena; (ii) a adoção de nova metodologia para a distribuição de recursos aos Distritos Sanitários Especiais Indígenas (DSEI); (iii) a criação de painéis digitais de acompanhamento orçamentário; (iv) a padronização dos instrumentos de contratação utilizados pelos DSEI; (v) a atuação conjunta da Sesai e da Agência Brasileira de Apoio à Gestão do SUS (AgSUS) para o provimento e a formação de profissionais de saúde em regiões vulneráveis; (vi) a ampliação do uso da telemedicina; (vii) o fortalecimento da participação das comunidades indígenas na governança do SUS; (viii) o aprimoramento dos indicadores de monitoramento e avaliação das políticas de saúde indígena.

O resultado das medidas adotadas pela União para efetivar as desintrusões também é significativo. Até o momento, 6 TIs já tiveram sua desintrusão concluída, com a subsequente apresentação de planos para garantir a continuidade da proteção das seguintes TIs: Karipuna, Kayapó, Araribóia, Munduruku, Trincheira Bacajá e Apyterewa. Além disso, entre março de 2024 e julho de 2025, foi registrada a redução de 98% dos garimpos ativos dentro da Terra Indígena Yanomami.

Os resultados da ação mostram que o processo estrutural pode ser um instrumento efetivo para a proteção aos direitos fundamentais de grupos vulneráveis e para impulsionar a reforma de instituições em estado crítico. No caso da ADPF 709, a atuação cooperativa desenvolvida na fase de monitoramento pelo Núcleo de Processos Estruturais e Complexos (Nupec), Advocacia-Geral da União, Casa Civil, Sesai e Controladoria-Geral da União foram fatores determinantes para os resultados alcançados.

Medidas para a consolidação de reformas estruturais

Como ressaltado pelos ministros Luís Roberto Barroso e Edson Fachin em seus respectivos votos, a conclusão de um processo estrutural não significa o fim dos problemas enfrentados na ação. Na verdade, o seu encerramento marca o início de uma nova fase: a consolidação das reformas estruturais implementadas. Para que a Sesai e o Ministério da Saúde sigam corrigindo as falhas na atenção à saúde indígena, o tribunal fixou cinco medidas de consolidação.

Primeira medida: a Sala de Situação deve permanecer como ambiente de diálogo e monitoramento à conclusão das desintrusões conduzidas na Pet 9.585. As reuniões devem ser periódicas, conforme determinação do Poder Executivo, incluindo representantes da Apib, do MPF e da DPU.

Segunda medida: a CGU, nos próximos dois anos, deve seguir elaborando relatórios de monitoramento semestrais sobre o cumprimento do Plano de Reestruturação do SasiSUS, elaborado pela Sesai e homologado pelo STF. Os relatórios devem ser publicizados pela CGU e pela Sesai em suas páginas institucionais, além de serem remetidos para a Apib, o MPF e a DPU.

Terceira medida: em 2028, o Conselho de Monitoramento e Avaliação de Políticas Públicas (CMAP) deve realizar um novo ciclo de avaliação do SasiSUS, com foco em implementação e resultados. Essa avaliação deve focar o monitoramento não apenas sobre métricas de saúde, mas também sobre a qualidade do serviço e a efetividade intercultural, assegurando que as evidências coletadas incidam em planos de ação imediatos e ajustes ágeis no modelo de gestão e alocação de recursos.

Quarta medida: conforme compromisso assumido pela União, a nova metodologia para distribuição de recursos entre os DSEI deve ser adotada a partir do PLOA 2027, que será apresentado ao Congresso Nacional em agosto de 2026.

Quinta medida: conforme proposto pela própria AgSUS, devem ser criados núcleos de inteligência nos DSEIs para a produção e sistematização de dados empíricos com o objetivo de melhorar os subsídios para monitoramento e avaliação constante da política pública pelos gestores do SasiSUS.

Conclusão

Em síntese, processos estruturais podem e devem ser concluídos sempre que as alterações já introduzidas indiquem uma retomada do adequado funcionamento de uma política pública, sua reformulação e, portanto, o restabelecimento da atuação funcional das instâncias majoritárias, às quais se atribui a primazia para a tarefa.

A intervenção do Judiciário na hipótese tem a função essencial de desbloquear o funcionamento de tais instâncias, promover o diálogo entre os interessados e, assim, gerar incentivos para que os ajustes necessários sejam implementados.

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Uma vez cumprido esse papel e estabelecido um plano de consolidação da política pública e de seu monitoramento, o Judiciário devolve a questão às instâncias majoritárias para que sigam acompanhando e reformulando tal política no dia a dia. De fato, políticas públicas demandam ajustes contínuos, na medida em que se alteram as condições originais sobre as quais incidem. Ajustes ordinários não são função do Judiciário em primeira mão. Cabe-lhe intervir apenas em situações extraordinárias de bloqueio estrutural.

Nessa linha, o STF demonstra que há como conciliar o enfrentamento de violações estruturais a direitos fundamentais com o princípio da separação dos poderes. Em tais casos, o tribunal deve atuar cirurgicamente, com o propósito de remover resistências e colocar as mudanças em curso. Cumprida essa função, entrega-se a matéria às instâncias responsáveis para que conduzam seu funcionamento ordinário. Assim, preserva-se a missão do tribunal de proteção aos direitos constitucionais, assim como a primazia da competência das instâncias majoritárias na definição das políticas públicas.

[1] CASIMIRO, Matheus; NAVARRO, Trícia; MELLO, Patrícia Perrone Campos. O processo estrutural no STF: quando e como encerrá-lo? JOTA, 2024. Disponível em: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/o-processo-estrutural-no-stf-quando-e-como-encerra-lo. Acesso em: 02 out. 2025.

[2] CASIMIRO, Matheus. Processo estrutural democrático: participação, publicidade e justificação. Salvador: Juspodivm, 2024.

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