O programa federal Agora Tem Especialistas, que recentemente anunciou a chegada de 125 médicos ao Sudeste, representa um reforço importante à rede pública de atendimento com o objetivo de ampliar o acesso da população a consultas e exames especializados, especialmente em regiões com vazios assistenciais.
No entanto, mais do que a alocação de recursos humanos, a iniciativa carrega um componente estrutural silencioso, porém decisivo: a integração dos prontuários eletrônicos entre o SUS e a saúde suplementar, viabilizada pela RNDS.
Com notícias da Anvisa e da ANS, o JOTA PRO Saúde entrega previsibilidade e transparência para empresas do setor
Essa interoperabilidade, impulsionada pelo Decreto 12.560/2025, não é apenas uma modernização tecnológica, mas sim uma nova arquitetura institucional do cuidado. Seu propósito é claro: reduzir filas, eliminar redundâncias diagnósticas, favorecer condutas mais assertivas e integrar jornadas clínicas fragmentadas. Na prática, ela permite que o especialista, ao atender, não atue no escuro, mas com base em um histórico clínico compartilhado, rastreável e validado.
Do lado da saúde suplementar, o impacto é ainda mais profundo: a interoperabilidade cria condições técnicas e jurídicas para coordenação do cuidado, rastreabilidade de desfechos e inovação em modelos de remuneração baseados em valor. Também fortalece a transparência regulatória, ao gerar trilhas auditáveis e interoperáveis entre prestadores, operadoras e o Estado.
Contudo, como destacado recentemente no seminário da FGV/ANS, os avanços estruturantes da saúde suplementar exigem mais do que soluções técnicas: demandam respostas jurídicas maduras, modelos regulatórios coerentes e arquitetura de confiança entre os atores do sistema.
É nesse ponto que emergem desafios relevantes e ainda pouco enfrentados, sobretudo à luz da Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD), das resoluções da ANS e das diretrizes técnicas da RNDS. O primeiro e mais sensível entrave é a chamada multinormatividade: a sobreposição de leis, portarias, resoluções técnicas e diretrizes setoriais pode gerar lacunas de interpretação, insegurança jurídica e ambiguidade de papéis, especialmente no que se refere ao compartilhamento de dados sensíveis.
A titularidade dos dados e a definição de finalidade legítima também permanecem zonas cinzentas. É fundamental que os dados transmitidos sejam restritos ao escopo da política pública, ou seja, à continuidade do cuidado em saúde, com vedação expressa a usos secundários comerciais, discriminatórios ou promocionais. A ausência de controle sobre isso pode expor operadoras, prestadores e fornecedores a riscos legais e reputacionais severos.
Além disso, persiste uma cultura institucional de “posse do dado”, que vê a informação clínica como ativo exclusivo, e não como bem sensível de interesse público e titularidade do cidadão. Essa lógica dificulta a adoção de soluções interoperáveis e compromete os princípios de centralidade no paciente e soberania informacional, pilares do Decreto 12.560/2025.
Outro ponto amplamente discutido no seminário foi a pressão sobre a sustentabilidade do setor, com a escalada de custos assistenciais gerada pela incorporação acelerada de tecnologias (muitas vezes com evidência frágil), judicializações crescentes e ausência de critérios explícitos de custo-efetividade.
Nesse contexto, a interoperabilidade — se bem implementada — pode ser a ferramenta-chave para viabilizar a racionalização clínica e contratual. Ao permitir o acompanhamento longitudinal dos pacientes, reduzir duplicidades e fornecer subsídios para auditoria e modelos baseados em desfecho, a integração dos prontuários se torna vetor de sustentabilidade econômica e regulatória.
No entanto, esses benefícios só se materializarão se houver firmeza jurídica, segurança técnica e alinhamento institucional. O Decreto 12.560/2025 definiu pilares importantes, como a adoção da RNDS como infraestrutura única, o fluxo unidirecional de dados da suplementar para o SUS (com envio automático a partir de outubro de 2025), e a obrigatoriedade de Relatório de Impacto à Proteção de Dados (RIPD), entre outras salvaguardas.
Ainda assim, o sucesso da política dependerá de três pilares complementares: governança federativa efetiva, medidas técnicas robustas de segurança e privacidade, e contratos bem estruturados entre operadoras e prestadores, com cláusulas específicas sobre LGPD, interoperabilidade TISS–FHIR, auditoria, resposta a incidentes e penalidades proporcionais.
Sem esses elementos, o que hoje se apresenta como avanço poderá se transformar em passivo jurídico, reputacional e institucional, especialmente diante de um Judiciário cada vez mais acionado e de um consumidor mais atento à proteção dos seus dados.
Assine gratuitamente a newsletter Últimas Notícias do JOTA e receba as principais notícias jurídicas e políticas do dia no seu email
A interoperabilidade dos prontuários, como política pública, não apenas como projeto tecnológico, é um passo ousado e necessário. Mas sua legitimidade depende da convergência entre inovação e segurança jurídica. O programa Agora Tem Especialistas tem o potencial de inaugurar um novo ciclo de cooperação entre o público e o privado na saúde, promovendo um sistema mais coordenado, sustentável e centrado no cidadão.
Para isso, é preciso reconhecer o dado clínico não apenas como registro, mas como infraestrutura crítica da saúde no Brasil — e tratá-lo com a mesma seriedade regulatória que se exige de qualquer política pública de impacto nacional.