A venda de medicamentos em supermercados no Brasil

A venda de medicamentos no Brasil é historicamente regulada por normas que buscam assegurar seu uso seguro e racional. A Lei 5.001, de 17 de dezembro de 1973, determina em seu artigo 5º, “caput”, que a comercialização desses produtos — inclusive os medicamentos isentos de prescrição médica (MIPs) — é permitida exclusivamente em farmácias e drogarias.

Essa limitação tem como objetivo principal a proteção da saúde pública, garantindo que o processo de venda ocorra sob a supervisão de profissionais devidamente qualificados e em conformidade com boas práticas sanitárias.

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Nesse sentido, a tramitação do o PL 2158/2023, que propõe admitir a venda de MIPs em supermercados, reacende o debate sobre os limites entre conveniência comercial e responsabilidade sanitária. A proposta legislativa, aprovada pela Comissão de Assuntos Sociais do Senado no último dia 17 de setembro, representa uma inflexão na política de acesso a medicamentos e demanda análise crítica sob múltiplas perspectivas.

Fundamentos legais e histórico regulatório

A legislação brasileira vigente define farmácias e drogarias como estabelecimentos de saúde[1], cuja função principal é a dispensação de medicamentos sob supervisão técnica. A tentativa de flexibilização dessa norma não é inédita.

Entre 1994 e 1995, foi editada a MP 542/1994, que autorizava a comercialização de medicamentos isentos de prescrição médica em supermercados, armazéns, empórios, lojas de conveniência e drugstores. Essa MP foi posteriormente convertida na Lei 9.069/1995. No entanto, durante o processo de conversão, o dispositivo que permitia tal comercialização foi suprimido, fazendo com que a autorização legal perdesse eficácia.

A controvérsia sobre a legalidade da venda de medicamentos fora de farmácias e drogarias foi objeto de diversas discussões judiciais, destacando-se o julgamento da Remessa Necessária Ex Officio 024030029730, do Tribunal de Justiça do Espírito Santo (TJES), no qual se decidiu que a autorização prevista na MP 542/1994 deixou de existir com a promulgação da Lei 9.069/1995, que não incluiu os supermercados entre os estabelecimentos autorizados a dispensar medicamentos:

APELAÇAO CÍVEL – PRELIMINAR DE CARÊNCIA DE AÇAO REJEITADA – MÉRITO – VENDA DE MEDICAMENTOS EM SUPERMERCADO – PROIBIÇAO – MEDIDA PROVISÓRIA COVERTIDA EM LEI – AUTORIZAÇAO SUPRIMIDA – RECURSO PROVIDO. 1) A lei reguladora dos medicamentos dispõe competência do Poder Executivo para fiscalizar e executar referida lei, portando rejeitada a preliminar de carência de ação. 2) O Supermercado somente esteve legitimado a comercializar medicamentos durante a vigência da MP 592/94. Com o advento da lei nº 9.069/95, que convalidou os efeitos da medida provisória em questão, essa legitimação deixou de existir, ante a supressão da expressa referência ao supermercado entre as pessoas jurídicas autorizadas, privativamente, a realizar dispensação de medicamentos. (TJ-ES – Remessa Ex-officio: 24030029730 ES 024030029730, Relator.: ELPÍDIO JOSÉ DUQUE, Data de Julgamento: 11/07/2006, SEGUNDA CÂMARA CÍVEL, Data de Publicação: 16/08/2006) (grifos adicionados).

Anos depois, o Supremo Tribunal Federal (STF) se debruçou sobre a análise da constitucionalidade da Lei 2.149, de 30 de setembro de 2009, editada pelo Acre, a qual autorizava a comercialização de produtos de conveniência em estabelecimentos farmacêuticos. O julgamento da ADI 4954 AC, evidenciou o embate entre a função sanitária atribuída às farmácias — voltada à promoção da saúde pública — e sua crescente atuação como agentes comerciais.

Tal discussão reforçou a necessidade de delimitação normativa precisa quanto às atividades que podem ser legalmente desempenhadas por esses estabelecimentos, preservando sua finalidade institucional sem comprometer os princípios constitucionais que regem o setor.

O PL 2158/2023

De autoria do senador Efraim Filho (União Brasil-PB), o PL 2158/2023 foi aprovado em caráter terminativo pela Comissão de Assuntos Sociais do Senado. Após audiências públicas, o relator, Humberto Costa (PT-PE), apresentou um substitutivo ao texto que estabelece critérios rigorosos para a comercialização de medicamentos em supermercados, a saber:

A venda será permitida apenas em farmácias completas, instaladas em área fisicamente segregada dentro do supermercado.
É obrigatória a presença de farmacêutico durante todo o horário de funcionamento.
Os medicamentos não poderão ser expostos em gôndolas comuns ou áreas de livre acesso.
Produtos sujeitos a controle especial deverão ser transportados em embalagens lacradas até o ponto de pagamento.
A comercialização por canais digitais será permitida apenas para entrega, conforme regulamentação da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa).

Posições favoráveis e contrárias

Os defensores da proposta argumentam que a medida pode ampliar o acesso da população a medicamentos, especialmente em regiões com baixa cobertura farmacêutica. A presença obrigatória de farmacêutico e a exigência de estrutura segregada são vistas como garantias mínimas de segurança.

Adicionalmente, a concorrência entre redes poderia estimular a redução de preços e gerar novas oportunidades de emprego para profissionais da área.

Por outro lado, entidades da área da saúde e representantes de farmácias independentes alertam para o risco de automedicação e uso inadequado de medicamentos, mesmo os considerados simples, como os MIPs. Dados da Anvisa indicam que analgésicos e anti-inflamatórios estão entre os principais causadores de intoxicações notificadas no país. Há também preocupações com a fiscalização efetiva das exigências legais e com o impacto econômico sobre pequenos estabelecimentos farmacêuticos.

Considerações finais

A proposta legislativa configura uma iniciativa voltada à modernização da política nacional de acesso a medicamentos, demandando, contudo, rigorosa atenção quanto à sua regulamentação e à observância dos princípios sanitários que orientam o setor farmacêutico. O principal desafio reside em assegurar que a lógica comercial da conveniência não se sobreponha à segurança do paciente tampouco comprometa o uso racional dos medicamentos.

O projeto encontra-se, atualmente, em fase de apreciação pela Câmara dos Deputados. Em caso de aprovação, será submetido à sanção presidencial. A regulamentação subsequente deverá estabelecer, de forma minuciosa, os critérios técnicos e operacionais para sua efetiva implementação, contemplando, inclusive, os parâmetros de fiscalização e as competências da vigilância sanitária.

BRASIL. Lei nº 5.001, de 17 de dezembro de 1973. Dispõe sobre a comercialização de medicamentos. Diário Oficial da União: seção 1, Brasília, DF, 18 dez. 1973.

BRASIL. Lei nº 9.069, de 29 de junho de 1995. Dispõe sobre o Plano Real, o Sistema Monetário Nacional, estabelece as regras para a comercialização de medicamentos e dá outras providências. Diário Oficial da União: seção 1, Brasília, DF, 30 jun. 1995.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal (STF). Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 4954 AC. Relator: Min. Luiz Fux. Brasília, DF, julgado em 2013.

ESPÍRITO SANTO (Estado). Tribunal de Justiça. Remessa Necessária Ex Officio nº 024030029730. Relator: Elpídio José Duque. Julgado em 11 jul. 2006. Publicado em 16 ago. 2006.

BRASIL. Senado Federal. Projeto de Lei nº 2.158, de 2023. Dispõe sobre a comercialização de medicamentos isentos de prescrição em supermercados. Disponível em: <https://www25.senado.leg.br>. Acesso em: 19 set. 2025.

ANVISA. Agência Nacional de Vigilância Sanitária. Intoxicações relacionadas ao uso de medicamentos no Brasil. Brasília, 2024. Disponível em: <https://www.gov.br/anvisa>. Acesso em: 19 set. 2025.

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