No último dia 9 de setembro foi publicada a mais recente emenda constitucional: a EC 136, que tem como objeto alterar (de novo) o regime de pagamento dos precatórios. E, para surpresa de zero pessoas, prevendo (novamente) formas de postergar o pagamento estabelecido pelos regimes então (e por enquanto) vigentes. Os precatórios acabaram de completar cem anos (!!!), desde que suas primeiras referências apareceram, na longínqua Constituição de 1824.[1]
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Se uma das principais funções das leis e do ordenamento jurídico como um todo – e nele se destaca a Constituição, norma fundamental do país –, é dar segurança jurídica, no regime de precatórios a única segurança que se tem é não haver segurança alguma.
A Constituição vigente, cujo texto original foi aprovado em 5 de outubro de 1988, já começou com um parcelamento dos precatórios, previsto no art. 33 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias[2]. Foi uma ilusão acreditar, à época, que tal benefício bastaria para reorganizar as finanças públicas e impedir a necessidade de novos ajustes.
A realidade, porém, costuma ser implacável e pouco receptiva às boas intenções. Desde esse “pontapé” inicial, o que se viu foram sucessivas alterações constitucionais, que já superam uma dezena, de emendas alterando o texto original e alterando as alterações, invariavelmente postergando o pagamento dos precatórios, que transformaram direitos líquidos e certos, reconhecidos pelo Judiciário em todas as instâncias, em uma miragem de oásis. E hoje, em vez de contemplarem os reais beneficiários, fazem a alegria e enriquecem os especuladores do mercado financeiro, que os utilizaram para criar um mercado milionário, em que todos ganham, menos o credor original.
Um quadro que se completa formando um caos legislativo inserido no texto da Constituição, com temas, detalhamento e minúcias completamente fora do âmbito do que deveria ser objeto de matéria constitucional. O art. 100 da Constituição, originalmente com o caput e dois parágrafos, hoje tem 30 parágrafos e respectivos incisos, e está longe de ser o único artigo que regula o tema, que se espalha por vários outros dispositivos nas disposições “transitórias” da Constituição.
O Estado brasileiro, em um roteiro repetido à exaustão, há décadas, mais uma vez recorre a um artifício constitucional para postergar o pagamento de suas dívidas judiciais. A recente promulgação da Emenda Constitucional 136/2025 abre um novo e preocupante capítulo em um enredo de desconfiança e instabilidade. A medida, que retira a rubrica do teto de gastos e institui um novo regime para o pagamento de precatórios, mediante teto da Receita Corrente Líquida (RCL) e novo índice de atualização monetária.
Já enfrenta forte resistência: o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (CFOAB) ajuizou a ADI 7873, com relatoria designada ao ministro Luiz Fux, prometendo reacender um debate antigo e ainda mal resolvido sobre o respeito aos direitos fundamentais e à autoridade das decisões judiciais.
A nova regra, na prática, transforma o dever líquido e certo de pagar em uma mera possibilidade fiscal. Para o CFOAB, a EC 136 institui uma “moratória disfarçada”, uma manobra legislativa que viola cláusulas pétreas da Constituição, como o direito adquirido, a coisa julgada, a separação dos Poderes e a segurança jurídica.
Não se trata de um exagero retórico: o Fórum Nacional de Precatórios do CNJ, chamado a se manifestar a respeito da emenda, levantou as mesmas preocupações da autora da ADI.[3] O que se observa é a consolidação de um modus operandi que, sob o pretexto de uma suposta “gestão fiscal responsável”, perpetua a cultura do calote institucionalizado. Historicamente, o Estado tem demonstrado uma predileção por empurrar suas obrigações para o futuro.
Parece cada vez mais atual a máxima “dívida não se paga, administra-se”, que alguns atribuem ao ex-ministro da Fazenda Delfim Netto, outros ao também ex-ministro Mário Henrique Simonsen, transformando o Estado em um devedor não confiável, o cidadão em um infeliz credor e o ordenamento jurídico constitucional em um papel sem valor e incapaz de ser útil para cumprir sua principal função.
Uma emenda que ressuscita, com uma nova roupagem, práticas que foram declaradas incompatíveis com a ordem constitucional. az dela apenas a mais recente, em uma série de manobras que levaram à explosão do passivo de precatórios, criando uma “bola de neve” de dívidas que agora se usa como justificativa para medidas ainda mais drásticas.
A EC 136/2025 institui, em síntese, um teto anual para o pagamento de precatórios pelos estados, Distrito Federal e municípios, vinculado à Receita Corrente Líquida (RCL) do exercício anterior. O limite varia entre 1% e 5% da RCL, conforme o estoque de precatórios em atraso: até 15% do estoque, paga-se 1%; à medida que o volume aumenta, o limite é progressivamente majorado até alcançar 5% quando ultrapassar 85%.
A partir de 2036, se persistir a mora, o limite mínimo sobe meio ponto percentual a cada dez anos. A sistemática flexibiliza a obrigação de quitação integral imediata em ordem cronológica, admitindo que parte do passivo seja paga dentro desses tetos anuais, com possibilidade de acordo direto para retirar parcela do estoque. O estabelecimento de um limite de pagamento foi veementemente rechaçado pelo STF no julgamento conjunto das ADIs 7047 e 7064.[4]
A corte entendeu que a imposição de um limite desvinculado da dívida real representa uma ofensa direta à coisa julgada e à separação dos Poderes, uma vez que o Legislativo estava, por via transversa, alterando o cumprimento de sentenças judiciais definitivas.
Quanto à atualização dos precatórios, a EC 136/2025 fixa a aplicação do IPCA acrescido de juros simples de 2% ao ano, devendo prevalecer a Selic caso esta resulte em valor menor. Anteriormente, a ADI 4357 foi paradigmática ao declarar a inconstitucionalidade da utilização da Taxa Referencial (TR) como índice de correção, por não refletir a real desvalorização da moeda.
Agora, a CFOAB sustenta que, ao adotar sempre o menor índice, o dispositivo “reduz artificialmente a atualização devida, incentivando o Estado a postergar os pagamentos e impondo perda patrimonial significativa ao credor”.[5]
Ainda, o incentivo criado pelo novo regime é profundamente perverso. Estados e municípios que, com esforço e boa gestão, vinham cumprindo rigorosamente suas obrigações judiciais e mantinham seu estoque de precatórios sob controle, são agora convidados a diminuir o fluxo de pagamento de precatórios — é o que se extrai da nova redação do § 23 do art. 100 que estabelece piso da RCL progressivo. Na prática, entes que ultrapassavam o piso estabelecido pela emenda são agora incentivados a reduzir o empenho de forma a atingir o mínimo exigido.
Por fim, a “nova” legislação sobre precatórios se revela uma crônica de inconstitucionalidade anunciada. Ao invés de buscar soluções estruturantes e sustentáveis para o pagamento das dívidas, o legislador optou por um caminho já trilhado e comprovadamente inconstitucional. A relativa previsibilidade do julgamento da ADI é um sintoma desalentador da dificuldade do Poder Público em honrar suas obrigações e respeitar as decisões judiciais, perpetuando um ciclo de insegurança jurídica e descrédito para com as instituições.
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Basta uma breve leitura do artigo 100 da Constituição e de suas disposições transitórias para perceber que, desde 1988, o regime de precatórios já foi alterado mais de uma dezena de vezes. Estamos presos em um círculo vicioso: cada nova emenda é vendida como a “solução definitiva”, mas apenas adia, acumula e agrava o problema da dívida. O passivo não desaparece; ele apenas cresce, corrigido por juros, para explodir nas mãos de gestores futuros.
A EC 136/2025 não é uma solução; é a perpetuação de uma cultura de improviso e oportunismo fiscal, onde o que deveria ser uma exceção se tornou a regra. Ao escolher o caminho mais fácil do adiamento, o Estado mina sua própria credibilidade, afugenta investidores e, acima de tudo, penaliza o cidadão.
[1] Sobre o tema, escrevi: CONTI, José Mauricio. Levando o Direito Financeiro a sério. 3ª ed. São Paulo: Blucher, 2019. Texto “No samba dos precatórios, quem dança são os credores!”, pp. 417-421 (versão eletrônica gratuita disponível em: https://www.blucher.com.br/levando-o-direito-financeiro-a-serio_9788580394023).
[2] Art. 33. É assegurada a liquidação, em até oito anos, da dívida resultante dos precatórios judiciais pendentes de pagamento na data da promulgação da Constituição, em prestações anuais, iguais e sucessivas, ressalvados os créditos de natureza alimentícia, assim definidos em lei.
[3] Ofício n° 10/2025/FONAPREC
[4] Esta última também da relatoria do Ministro Luiz Fux
[5] Petição CFOAB ADI 7873