O Supremo Tribunal Federal (STF) começa nesta quarta-feira (1/10) o julgamento de um dos temas trabalhistas mais sensíveis que tramitam na Corte: o vínculo de trabalho entre motoristas e entregadores com plataformas digitais. O assunto será o primeiro a ser enfrentado na gestão de Edson Fachin como presidente e Alexandre de Moraes como vice em dois processos relatados pela dupla. Neste primeiro momento, serão feitas apenas as sustentações orais e, depois, serão marcadas novas sessões para a votação da matéria.
Diante dos pensamentos distintos dos relatores, nos bastidores do STF, existe uma discussão de uma construção intermediária para a questão das plataformas, porém, ainda não está claro como se daria – uma das hipóteses seria tirar essa categoria da CLT, como se fez com outras como caminhoneiros e cabeleireiros, que têm leis específicas. No entanto, ainda não existe uma lei específica para esse grupo. Por isso, um dos temas que deve aparecer nos votos é a chamada aos outros Poderes sobre o tema, tanto o governo federal quanto o Congresso têm os seus projetos, mas as tratativas não avançaram para um texto final.
Conheça o JOTA PRO Trabalhista, solução corporativa que antecipa as movimentações trabalhistas no Judiciário, Legislativo e Executivo
De qualquer forma, no STF, a separação das ações de motoristas e entregadores de outras categorias pejotizadas, que estão em um recurso do ministro Gilmar Mendes, sinaliza que podem surgir soluções diferentes para o tema a depender da categoria. A distinção deve levar em conta o intermédio de uma plataforma digital, a vulnerabilidade social do trabalhador e a possibilidade de fraude.
O processo relatado por Edson Fachin é um recurso extraordinário proposto pela Uber contra decisão do Tribunal Superior do Trabalho (TST) que reconheceu a existência de vínculo empregatício entre uma motorista e a empresa. Para a corte trabalhista, a Uber é uma empresa de transporte e não uma plataforma digital, portanto, ela não faz intermediação de serviços.
Na visão da Justiça trabalhista, existe uma relação de subordinação algorítmica que gera a relação de emprego. O recurso tem repercussão geral e a tese que for construída deverá ser o parâmetro para os demais processos em curso pelo país nas instâncias inferiores.
Ao votar por reconhecer a repercussão geral, Fachin ressaltou a importância do tema. “Não se pode olvidar que há decisões divergentes proferidas pelo Judiciário brasileiro em relação à presente controvérsia, o que tem suscitado uma inegável insegurança jurídica”, escreveu. A decisão da Corte terá efeito em 10 mil processos semelhantes que aguardam a decisão do plenário.
O outro recurso é uma reclamação relatada por Alexandre de Moraes em que a Rappi contesta decisão da Justiça do Trabalho que reconheceu vínculo de emprego de um entregador com a plataforma. A empresa sustenta que a decisão trabalhista está em desacordo com o precedente do STF que permitiu a terceirização irrestrita.
Fachin e Moraes têm posturas distintas sobre o tema. Fachin tem uma postura mais protecionista do trabalhador e aliado à Justiça trabalhista, o ministro tem demonstrado preocupação com a hiper vulnerabilização dessa categoria. Durante a fala final na audiência pública, o ministro Fachin pontuou que as exposições só tinham três pontos em comum: a relevância do tema; os pontos de discordância e que a solução deve ocorrer de forma institucional. “Fora da institucionalidade não há pessoas com reconhecimento de legítimos direitos e fora da institucionalidade também não há empresas no ambiente sadio de mercado”, disse à época.
Já Moraes tem defendido que a relação de emprego tradicional engessa as relações de trabalho. Para ele, as oportunidades de trabalho nos tempos atuais não coincidem com aqueles do modelo fabril da Revolução Industrial.
No decorrer do processo, a Uber defendeu que motoristas parceiros sejam enquadrados como “nanoempreendedores” e a empresa como intermediária que viabiliza o serviço. Para embasar o raciocínio, a empresa usou a regulamentação da reforma tributária.
Desde que o STF decidiu pela terceirização irrestrita, o Supremo passou a receber uma enxurrada de ações, em especial, reclamações trabalhistas, alegando que a Justiça do Trabalho não está cumprindo a decisão da Corte ao estabelecer vínculo de emprego em diversas categorias, que vão desde motoristas de aplicativos passando por corretores, advogados, médicos e franqueados.
O que dizem os envolvidos
A Procuradoria-Geral da República (PGR) se posicionou contrária ao vínculo de emprego entre motoristas e entregadores de aplicativo e as plataformas dois dias antes do julgamento. O procurador-geral da República (PGR), Paulo Gonet, justifica que já existe jurisprudência consolidada no Supremo que admite formas distintas do contrato de emprego regido pela Consolidação das Leis do Trabalho (CLT). Para isso, cita julgados como o que permitiu a terceirização irrestrita, o que validou os contratos civis de parceria entre salões de beleza e profissionais do setor e as reclamações que chegaram sobre motoristas e plataformas em que o STF já afastou o vínculo.
Assine gratuitamente a newsletter Últimas Notícias do JOTA e receba as principais notícias jurídicas e políticas do dia no seu email
Na mesma ocasião, pelas empresas, o diretor-executivo da Associação Brasileira de Mobilidade e Tecnologia (Amobitec), André Porto, calculou que o reconhecimento de vínculo empregatício entre motoristas de aplicativos e as plataformas significaria uma perda de R$ 33 bilhões no PIB [Produto Interno Bruto] e redução de R$ 2 bi em arrecadação. O CEO do Ifood, Diego Barreto, defendeu a regulamentação, porém, em sua avaliação, não pode haver vínculo empregatício. Segundo ele, as empresas podem contribuir para a previdência.
Em outra direção, o representante do Ministério Público do Trabalho (MPT), Renan Bernardi Kalil, defendeu a relação de emprego. Em sua avaliação, o sistema de algoritmos gerencia a relação entre os motoristas e a plataforma, gerando uma subordinação. Afinal, existe a distribuição das corridas, das tarefas e das tarifas pelo aplicativo.
O presidente da Aliança Nacional de Entregadores por Aplicativos (ANEA), Nicolas Souza, criticou os dados trazidos pelas empresas, como a quantidade de horas trabalhadas e os valores. Segundo ele, existe uma má-fé na abordagem das pesquisas de opinião. O representante dos trabalhadores também destacou os riscos da atividade, como a rapidez nas entregas, o que leva a muitos acidentes laborais.
Em busca de consenso
Atualmente, não existe um entendimento unânime no Direito do Trabalho em relação à uberização. Em entrevista ao JOTA, a advogada e consultora trabalhista Lina Santiago explica que, se por um lado, há a defesa de que não deve existir vínculo, pois não existe subordinação entre a plataforma e o trabalhador, por outro lado, há uma corrente que afirma que a Uber aplica “punições” a motoristas que não trabalham por um período e controla preços da atividade exercida, existindo uma fiscalização digital do serviço, chamada de subordinação algorítmica.
Para ela, é preciso chegar a um consenso. “Existem centenas de plataformas com características muito distintas, em que o motorista pode de fato negociar o próprio preço, pode de fato decidir se pega ou não uma corrida e a gente aplica uma mesma decisão para todas as plataformas é extremo. Eu acho que existe um questionamento que precisa ser feito quanto a esse ponto”, completa.
O procurador do Ministério Público do Trabalho no Rio de Janeiro Cássio Casagrande defende que a inexistência de horário fixo de trabalho não anula a subordinação. “O que há de novo no serviço de transporte de pessoas e objetos? A novidade é apenas no uso de um aplicativo, que não altera a natureza do trabalho subordinado. O fato de que não haja um horário certo de trabalho ou mesmo trabalho todos os dias não altera a existência de subordinação, como ocorre no caso de trabalho intermitente ou avulso”, afirma.
Já o advogado trabalhista Rubens Gama analisa a questão por outro ângulo. “Classicamente, a gente tem o empregador de um lado, que é dono dos instrumentos de produção, e do outro lado quem está fornecendo o trabalho. Quando a gente entra em trabalho contratado por aplicativo, e a Uber é um deles, por isso o termo Uberização, não existe mais o monopólio dos instrumentos. O próprio prestador do trabalho também está colocando junto os meios de produção”, disse ao JOTA.
O que está em discussão?
No recurso, a Uber alega que a decisão do TST viola o artigo 5º, II e XIII; e 170, IV, da Constituição, que versam, entre outros temas, sobre o livre exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão e o princípio da livre concorrência. A empresa pontua ainda que, ao reconhecer o vínculo empregatício, a decisão põe em risco um ‘marco revolucionário’ nos modelos de mobilidade urbana e ameaça a permanência da empresa no Brasil.
Por outro lado, a Justiça Trabalhista tem reconhecido haver os requisitos que caracterizam o vínculo empregatício em casos como esse e tem considerado a “subordinação” um elemento estruturante. No caso concreto, o acórdão do Tribunal Regional do Trabalho da 1ª Região destaca que há elementos de subordinação indireta, que vem sendo chamada de “subordinação algorítmica”. Comandos, ainda que inseridos no algoritmo do software utilizado por plataforma, “são meios de comando, controle e supervisão que se equiparam aos meios pessoais e diretos de subordinação jurídica por expressa dicção legal (art. 6º, parágrafo único, da CLT)”.
Assim, considera-se que “qualquer trabalhador que está integrado à organização produtiva de outrem – que a detém e organiza, por não ser possuidor de sua própria organização produtiva – recebendo ordens ou programações, ainda que por meio telemático, é objeto de proteção pelo Direito do Trabalho”.