Reforma tributária: fim de uma guerra ou início de outra?

A aprovação da reforma tributária foi celebrada como o marco do fim da guerra fiscal entre os estados. A substituição do ICMS e do ISS pelo Imposto sobre Bens e Serviços (IBS), com alíquotas uniformes e incidência no destino, promete encerrar décadas de disputas por benefícios que distorciam a concorrência e fragilizavam a arrecadação.

A chamada “guerra fiscal” não surgiu do nada. Desde os anos 1990, com a Lei Kandir e incentivos voltados às indústrias e centros de distribuição, Estados passaram a competir oferecendo descontos, isenções e regimes especiais. O resultado: decisões judiciais, conflitos políticos e insegurança jurídica para empresas e governos.

Conheça o JOTA PRO Tributos, plataforma de monitoramento tributário para empresas e escritórios com decisões e movimentações do Carf, STJ e STF

De fato, sob a lógica do novo sistema, não haverá mais espaço para a diferenciação de alíquotas estaduais. A uniformização põe fim à competição tributária interestadual que tantas vezes gerou litígios e longas batalhas nos tribunais. Em tese, ganha o país: empresas escolhem onde se instalar a partir de critérios mais racionais, como infraestrutura e logística, e não pela “promoção fiscal” de determinado estado.

Mas se a guerra fiscal do ICMS tende a desaparecer, será que a disputa entre os entes federativos realmente chegou ao fim? É provável que não. Estados e municípios não abrirão mão de buscar instrumentos para atrair investimentos, e, com a perda dessa poderosa ferramenta, outros caminhos começam a se desenhar.

No campo estadual, é razoável esperar uma intensificação dos incentivos não tributários: terrenos subsidiados, linhas de crédito favorecidas por bancos estaduais, investimentos em capacitação de mão de obra e melhorias logísticas direcionadas. A competição continuará, apenas em outras bases.

Já no âmbito municipal, a questão pode ser ainda mais delicada. Tributos como o IPTU e o ITBI não foram abarcados pela reforma. Nada impede que municípios, em busca de indústrias, centros de distribuição ou novos empreendimentos imobiliários, passem a conceder reduções expressivas, isenções ou benefícios vinculados a esses impostos. Na prática, podemos assistir ao surgimento de uma “guerra fiscal municipal”, com prefeitos disputando investimentos a partir de incentivos em tributos locais.

Mais do que uma iniciativa espontânea dos municípios, é possível que os próprios estados passem a utilizar as prefeituras como “braço auxiliar” nessa nova lógica competitiva. Por meio de acordos políticos e parcerias institucionais, incentivos municipais em tributos como IPTU e ITBI podem se transformar em ferramenta indireta dos estados para continuar atraindo empresas e investimentos.

Nesse cenário, a guerra fiscal não desaparece: apenas se reorganiza em camadas, com os municípios desempenhando o papel de protagonistas formais de uma disputa arquitetada em nível estadual.

Outro ponto importante é o Fundo Nacional de Desenvolvimento Regional (FNDR), criado justamente para compensar estados menos desenvolvidos diante do fim da guerra fiscal. Alimentado com recursos da União, o fundo terá como objetivo financiar projetos de infraestrutura, inovação e diversificação produtiva, buscando equilibrar a competitividade entre as regiões do país.

Apesar de sua função social e econômica, o FNDR não elimina a busca por atratividade: ao contrário, pode incentivar que estados mais ricos se apoiem em municípios estratégicos para oferecer pacotes diferenciados, reforçando o papel instrumental das prefeituras nesse novo tabuleiro.

Esse movimento levanta pontos de atenção. Até que ponto tais benefícios são constitucionais? Qual o limite para que a competição não comprometa a própria arrecadação dos municípios, responsável por serviços essenciais como saúde, educação e transporte público? O risco é que, em nome de atrair negócios, cidades menores acabem fragilizando seus cofres e, por consequência, sua população.

Além disso, a experiência da guerra fiscal mostra que onde há incentivos, há judicialização. Mesmo com a uniformização do IBS, é provável que surjam disputas sobre a legalidade de acordos municipais e estaduais, testando novamente os limites da Constituição.

O desafio é equilibrar a necessidade legítima de desenvolvimento econômico com a preservação da justiça fiscal e da segurança jurídica. O fato de o ICMS e o ISS terem sido substituídos não significa que a lógica de competição federativa desapareceu. Apenas mudou de endereço.

Receba de graça todas as sextas-feiras um resumo da semana tributária no seu email

A reforma tributária resolve um problema histórico, mas abre espaço para novas tensões. A guerra fiscal, ao que tudo indica, não se extingue: apenas se reinventa. Cabe agora ao legislador, ao Judiciário e aos próprios contribuintes vigiar de perto como estados e municípios usarão suas ferramentas para atrair investimentos, a fim de evitar que velhos desequilíbrios ressurgem sob novas roupagens.

E, no fim, fica a provocação: será que o Brasil está realmente preparado para uma guerra fiscal municipal? Ou apenas trocamos a arena do conflito, sem resolver as antigas distorções?

Generated by Feedzy