Nos últimos dias, tem sido noticiada a intenção do governo federal de instituir uma contribuição de intervenção no domínio econômico (Cide) sobre serviços de publicidade em redes sociais. A iniciativa integraria um plano de contingência mais amplo para lidar com a crise decorrente da imposição de tarifas de 50% sobre produtos brasileiros pelo governo americano.
Embora a proposta ainda não tenha sido formalmente apresentada, foi noticiado que a ideia seria restringir sua incidência a empresas de elevado faturamento – o que, na prática, atingiria grandes plataformas estrangeiras, como Meta (Instagram e WhatsApp), X (ex-Twitter) e Alphabet (Google e YouTube).
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A medida parece inspirar-se na Digital Services Tax (DST), modelo de tributação unilateral adotado por alguns países (como França e Canadá), voltado a alcançar receitas obtidas por empresas digitais em razão da exploração econômica de mercados consumidores locais, mesmo sem presença física nas respectivas jurisdições.
Trata-se de uma reação à erosão da base tributária causada por modelos de negócios que, embora altamente lucrativos, escapam à lógica tradicional das regras de atribuição de competência fiscal. De acordo com o que se apurou até o momento, o novo tributo teria alíquota de 3% e sua arrecadação seria destinada à Anatel, à promoção de atividades jornalísticas e ao abastecimento de fundos setoriais voltados ao cinema.
Apesar da aparência moderna, a proposta de criação de uma Cide sobre os serviços digitais prestados por big techs nos termos apresentados, seria inconstitucional. As contribuições interventivas são tributos com função específica: viabilizar financeiramente uma intervenção da União no domínio econômico. Sua instituição não pode servir, portanto, como mero instrumento de arrecadação, nem tampouco ser mobilizada como reação circunstancial a conflitos comerciais ou como resposta à ineficiência do sistema tributário vigente.
A Constituição exige que a criação de uma Cide esteja vinculada à existência de uma justificativa legítima para a intervenção no domínio econômico que busca viabilizar – como a correção de uma falha de mercado ou o fomento de determinado setor, conforme os fins delineados pela ordem econômica constitucional. Esse vínculo não é acidental: ele estrutura a própria competência tributária da União no campo das contribuições interventivas.
Ainda que exista intensa produção doutrinária sobre os contornos materiais dessa exigência, é inequívoco que retaliar medidas comerciais adotadas por outros países, por mais gravosas que sejam, não configura falha ou desequilíbrio de mercado a ser endereçado por meio da criação de um tributo.
Tarifas são instrumentos de política comercial, e seu enfrentamento deve se dar no plano da diplomacia ou no âmbito de organismos multilaterais. Admitir que a competência tributária possa ser acionada como instrumento retaliatório implica deformar sua natureza e subverter os limites que lhe foram impostos pelo constituinte.
O mesmo raciocínio vale para a alegada “necessidade” de suprir a insuficiência das regras de tributação da renda diante dos desafios da economia digital. Essa circunstância não revela uma falha de mercado a ser corrigida, mas uma deficiência legislativa a ser enfrentada pelo processo político adequado.
Não se compatibiliza com a lógica das contribuições interventivas transformar a própria inércia normativa do Estado em justificativa para instituir nova fonte de receita – sobretudo quando os recursos não são destinados a uma política pública de intervenção no setor explorado, mas a áreas alheias e desconexas, como o jornalismo e o audiovisual.
A proposta, portanto, padece de dupla incompatibilidade: com os pressupostos fáticos exigidos pela Constituição e com os requisitos de destinação próprios da Cide. O tributo é apresentado como solução para problemas que não têm qualquer relação com o domínio econômico – como se a competência para sua instituição fosse ampla, irrestrita e moldável conforme a conveniência arrecadatória do momento.
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Porém, o problema central não está apenas na inconstitucionalidade da Cide sobre big techs, nem no seu viés arrecadatório. O que se anuncia, de forma ainda mais preocupante, é a transformação da competência tributária em um instrumento de conveniência política, mobilizado de acordo com as necessidades imediatas do governo. Quando isso acontece, os freios institucionais se corroem, e o sistema tributário passa a oscilar ao sabor da conveniência política.
Quando isso acontece, não é apenas o sistema tributário que se fragiliza. É a própria ordem constitucional que se dissolve pouco a pouco, substituída por uma lógica em que o cálculo de arrecadação ou a oportunidade política se sobrepõem a qualquer outro valor. O risco maior, portanto, não está neste tributo em si, mas na corrosão silenciosa das regras de competência tributária: de limite ao poder estatal, convertem-se em fundamento para legitimar o seu exercício abusivo.