A recente denúncia apresentada à Comissão Interamericana de Direitos Humanos contra a pejotização no Brasil recoloca no centro do debate jurídico e político a compatibilidade dessa prática com a Constituição de 1988 e com o sistema internacional de proteção aos direitos humanos.
O fenômeno, que se disseminou em setores estratégicos da economia, é apresentado como “modernização das relações de trabalho”, mas revela-se, na realidade, como mecanismo de fraude que subtrai garantias trabalhistas e previdenciárias de caráter fundamental.
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A Constituição consagra, no artigo 1º, inciso IV, o valor social do trabalho como fundamento da República. O artigo 7º, por sua vez, elenca um rol de direitos destinados à proteção da dignidade do trabalhador, assegurando piso mínimo de proteção social. Esses direitos, segundo o Supremo Tribunal Federal, compõem um núcleo essencial indisponível. Além disso, o princípio da dignidade da pessoa humana, previsto no artigo 1º, inciso III, orienta toda a ordem constitucional, impondo ao Estado e à iniciativa privada o dever de estruturar relações laborais que respeitem a condição humana de quem trabalha.
Do ponto de vista internacional, a Declaração Universal de Direitos Humanos e o Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais reconhecem o trabalho como direito humano fundamental, vinculando os Estados à sua proteção efetiva. O Protocolo de San Salvador, incorporado ao ordenamento brasileiro, reafirma que o direito ao trabalho deve ser garantido em condições justas, seguras e equitativas.
A pejotização, ao impor ao trabalhador a abertura de pessoa jurídica para mascarar vínculo empregatício, viola frontalmente tais normas. O trabalhador continua prestando serviços de forma pessoal, habitual, onerosa e subordinada, mas sem acesso a férias, 13º salário, FGTS, adicional de horas extras, licença-maternidade ou cobertura previdenciária integral. Trata-se de uma burla contratual que nega eficácia a normas constitucionais de ordem pública e compromete a função social do contrato de trabalho.
O impacto transcende a esfera individual e atinge a própria sustentabilidade do sistema de Seguridade Social. A Previdência, estruturada sobre o princípio da solidariedade, depende do financiamento advindo das contribuições sociais incidentes sobre a folha de salários. A pejotização drena essas receitas, fragilizando o pacto intergeracional e fomentando narrativas de déficit que servem de justificativa para reformas restritivas.
O resultado é o desmonte progressivo da proteção social assegurada pelo artigo 194 da Constituição. Ao mesmo tempo, mina-se a função social da empresa, que deve cumprir papel de integração social e respeito à dignidade humana, e não de precarização.
Sob a ótica do direito internacional, o Brasil pode ser responsabilizado por violação de obrigações previstas na Convenção Americana de Direitos Humanos e no Protocolo de San Salvador. A jurisprudência da Corte Interamericana já reconheceu, em diversos casos, que a omissão estatal diante de práticas que negam direitos fundamentais pode configurar violação de tratados. Ao levar a pejotização ao sistema interamericano, expõe-se o Estado brasileiro à possibilidade de condenação internacional, com determinação de medidas estruturais.
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Não se trata, portanto, de disputa semântica ou de mera opção contratual. A pejotização representa projeto político neoliberal de transferência de riscos ao trabalhador, desmonte da rede de proteção social e enfraquecimento da Justiça do Trabalho como espaço de tutela efetiva. Sua naturalização ameaça à democracia, pois precariza a cidadania social e fragiliza a própria Constituição. A Justiça do Trabalho, cuja razão de ser é equilibrar a assimetria entre capital e trabalho, perde eficácia se o próprio vínculo de emprego for apagado por artifícios contratuais.
A denúncia internacional tem potencial histórico porque retira a pejotização do campo estritamente doméstico e a coloca sob escrutínio internacional. O Brasil será chamado a responder se pretende manter a fidelidade ao pacto constitucional de 1988 ou se optará por institucionalizar a fraude como modelo de gestão do trabalho. A resposta definirá não apenas o futuro das relações laborais, mas também o compromisso do país com os direitos humanos. Reconhecer que trabalho não é mercadoria é reafirmar que a democracia brasileira só se sustenta com trabalho digno, proteção social e respeito à dignidade humana.