O Brasil vive uma epidemia de judicialização. No final de 2023 tínhamos 83,8 milhões de processos em tramitação, sendo que apenas naquele ano foram registrados 35 milhões de novos casos (o maior número em quase 20 anos) e 32 milhões de casos julgados[1].
Mesmo com o grande volume de processos julgados e melhoria dos indicadores de Produtividade da Magistratura (IPM), [2] o Brasil ainda está no topo do ranking dos países mais litigiosos do mundo. Estudos feitos pelos professores Mark Ramseyer, da Universidade Harvard, e Eric Rasmusen, da Universidade de Indiana, apontam que o número de processos por 100 mil habitantes representava 5.806 para os EUA, 3.861 para Inglaterra e 1768 para o Japão.
No mesmo sentido, Wollschlager mostrou que na Europa o país mais litigioso era a Alemanha, com 12.300 casos, seguida pela Suécia, com 11.120, enquanto no Brasil temos 40.078 casos para cada 100 mil habitantes[3].
Conheça o JOTA PRO Poder, plataforma de monitoramento que oferece transparência e previsibilidade para empresas
Este cenário nos mostra que existe uma estrutura de incentivos ao litígio judicial no Brasil diferente de qualquer outro país, o que faz que a judicialização muitas vezes seja uma escolha racional pelos agentes interessados em lucrar com este sistema. Mas como seria esta estrutura que muitos consideram “a cultura do litígio” no Brasil?
Um dos primeiros incentivos jurídicos para judicialização de conflitos foi criado pela Constituição de 1988, que ampliou direitos sem assegurar mecanismos administrativos correspondentes para implementação destes direitos.
Além disso, incentivos processuais, como a ampla gama de possibilidades de acesso ao judiciário e a recorribilidade das decisões judiciais, se somam aos problemas da litigiosidade. Incentivos políticos, como decisões do Executivo e do Legislativo que transferem ao Judiciário a responsabilidade de resolver impasses, são também incentivos à cultura do litígio e, não menos importante, incentivos econômicos. Litigar muitas vezes é barato, especialmente quando se conta com a gratuidade processual. Diante de tal cenário, para certos atores, criar litígios se torna até mais vantajoso que evitá-los.
A história recente do Judiciário brasileiro tem nos permitido compreender melhor a estrutura dos litígios graças a uma maior disponibilidade de dados estruturados do sistema de justiça. Se antes navegávamos em águas turvas de estatísticas fragmentadas e diagnósticos imprecisos, hoje temos um horizonte mais claro graças a projetos como o DataJud, instituído pela Resolução CNJ 331/2020, a Plataforma Digital do Poder Judiciário Brasileiro instituída pela Resolução CNJ 335/2020 e outras ferramentas privadas de jurimetria.
Essa estrutura que centraliza dados e informações do Judiciário de todo país fornece um espelho do sistema de justiça que permite enxergar, com mais precisão, fenômenos que há poucos anos eram intuídos, mas não comprovados. Entre eles, talvez o mais complexo e desafiador: a litigância predatória.
As Notas Técnicas dos Centros de Inteligência dos Tribunais de Justiça expõem o tamanho do problema da litigância predatória. O Tribunal de Justiça de Mato Grosso do Sul identificou, entre 2015 e 2021, mais de 64 mil ações envolvendo empréstimos consignados, quase metade ajuizadas por um único advogado, repetindo narrativas hipotéticas e sem apresentar documentos essenciais. A maior parte dessas ações foi julgada improcedente, com condenação em litigância de má-fé[4].
O Núcleo de Monitoramento de Perfis de Demandas (Numopede), ligado à Corregedoria Geral da Justiça do Estado de São Paulo, apurou que a movimentação predatória de processos custa aos cofres públicos (no período de 2016/2021) aproximadamente, R$ 16,7 bilhões, equivalente a R$ 2,7 bilhões por ano[5].
Em Minas Gerais, um estudo jurimétrico revelou números ainda mais alarmantes: somente em 2020, estima-se que 1,29 milhão de ações fabricadas tenham ingressado na Justiça Estadual, ao custo mínimo de R$ 10,7 bilhões absorvidos pelo Estado[6].
A Rede de Inteligência do Poder Judiciário do CNJ em Nota Técnica[7] apresentada ao Supremo Tribunal Federal quando do julgamento do Tema Repetitivo 1198, de relatoria de Mônica Silveira Vieira, evidenciou a criação de litigiosidade artificial no patamar mínimo de 30% das ações em todo país. Estimou-se que no ano de 2022 teria havido o ingresso de 2.801.842 demandas não fundadas em litígios reais. Estas demandas fabricadas em busca de ganhos ilícitos, teve o custo mínimo de R$ 25.036.363.522,56. Tal valor é praticamente todo absorvido pelo Estado brasileiro, pois a quase totalidade dessas ações é movida sob justiça gratuita.
O fenômeno da litigância predatória, ainda em construção na doutrina e na prática forense, descreve o ajuizamento artificial de demandas, fabricadas em série, com pouco ou nenhum lastro em litígios reais. Não se trata da litigância de volume, legítima, tampouco do exercício de direitos coletivos. É um uso abusivo do sistema judiciário, marcado por petições padronizadas, documentos frágeis e, em alguns casos, verdadeiras fraudes, como falsificação de assinaturas ou apropriação indevida de valores de terceiros. A litigância predatória é um veneno silencioso: não apenas fere a parte contrária, mas atinge o próprio organismo do sistema de justiça, desviando recursos, tempo e confiança social[8].
Na tentativa de frear o impulso da litigância predatória, o Superior Tribunal de Justiça, sob o rito dos recursos repetitivos (Tema 1.198), fixou em março tese segundo a qual, “constatados indícios de litigância abusiva, o juiz pode exigir, de modo fundamentado e com observância à razoabilidade do caso concreto, a emenda da petição inicial a fim de demonstrar o interesse de agir e a autenticidade da postulação, respeitadas as regras de distribuição do ônus da prova”.
Segundo o relator, Ministro Moura Ribeiro, em diversas regiões do país tem havido uma avalanche de processos infundados, caracterizados pelo uso abusivo da advocacia, sem respaldo no legítimo direito de ação. Ainda segundo ele, tais demandas não apenas dificultam a prestação de uma jurisdição efetiva, mas também geram sérios problemas de política pública, conforme identificado por órgãos de inteligência de vários tribunais[9].
A Recomendação CNJ 159, de 23 de outubro de 2024, sugeriu medidas para identificação, tratamento e prevenção da litigância abusiva. Segundo o documento, na caracterização do gênero “litigância abusiva” devem ser consideradas como espécies as condutas ou demandas sem lastro, temerárias, artificiais, procrastinatórias, frívolas, fraudulentas, desnecessariamente fracionadas, configuradoras de assédio processual ou violadoras do dever de mitigação de prejuízos. Além disso, recomenda ao magistrado que identificar indícios de desvio de finalidade na atuação dos litigantes em casos concretos determine diligências a fim de evidenciar a legitimidade do acesso ao Judiciário.
O problema é ainda mais grave porque se soma ao paradoxo brasileiro: um país que, ao mesmo tempo em que figura entre os mais litigiosos do mundo, convive com uma profunda sensação de injustiça e desigualdade no acesso à justiça. Um estudo feito pelo Departamento de Pesquisas Judiciárias do CNJ revela que mais de 54% dos litigantes que solicitaram gratuidade da justiça tinham renda superior a R$ 5.500, e 35% ganham acima de R$ 11 mil[10]. O sistema, financiado por todos, é acessado desproporcionalmente pelos que mais poderiam pagar. E o custo, no final, recai sobre toda a sociedade.
Combater a litigância predatória não significa, como dizem alguns críticos, perseguir a advocacia de consumo ou restringir o direito de ação. Significa, ao contrário, proteger a integridade do sistema de justiça contra fraudes que distorcem sua função essencial.
Para isso, não basta o endurecimento processual, como o indeferimento de petições iniciais frágeis ou a aplicação de multas por má-fé. É necessário compreender todos os meandros do sistema de justiça, identificar padrões por meio de tecnologia avançada, estruturar equipes especializadas e articular instituições em torno de um objetivo comum.
Assine gratuitamente a newsletter Últimas Notícias do JOTA e receba as principais notícias jurídicas e políticas do dia no seu email
O desafio é enorme, mas o diagnóstico já está posto: a litigância predatória custa bilhões de reais ao Estado brasileiro e mina a confiança na Justiça. Ignorá-la é permitir que o sistema continue financiando sua própria corrosão. Enfrentá-la é tarefa urgente — e só será possível com estratégia, tecnologia, cooperação institucional entre todos os agentes do mercado e coragem.
Afinal, se o direito de ação é a porta de entrada para a cidadania, cabe à sociedade garantir que ele não se transforme em um atalho para a fraude. Só assim será possível cortar o ciclo vicioso da litigância artificialmente criada, resgatar a confiança na Justiça e garantir que o direito de ação volte a ser o que deveria ser: instrumento de cidadania.
[1] https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2025/04/justica-em-numeros-2024.pdf acesso em 16/09/2025
[2] https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2025/04/justica-em-numeros-2024.pdf acesso em 16/09/2025
[3] Apud Yeung, Luciana. O judiciário brasileiro: uma análise empírica e econômica. Indaiatuba, SP: Editora Foco, 2024
[4] Nota Técnica 01/2022 – disponível em www.tjms.jus.br/storage/cms-arquivos/ebf0c4b5d6072dc093c38ba2f39db588.pdf acessada em 16/09/2025
[5] https://api.tjsp.jus.br/Handlers/Handler/FileFetch.ashx?codigo=151470, acesso em 16/09/2025.
[6] Nota Técnica 01/2022 – Litigância Predatória, disponibilizada no DJe de 15/7/2022. Disponível no site www.tjmg.jus.br/data/files/49/80/E5/70/DF212810B8EE0B185ECB08A8/NT_01_2022%20_1_%20_1_.pdf, acessado em 16/09/2025
[7] https://www.cjf.jus.br/cjf/corregedoria-da-justica-federal/centro-de-estudos-judiciarios-1/nucleo-de-estudo-e-pesquisa/notas-tecnicas/nota-tecnica-n-44-2024/@@download/arquivo#:~:text=A%20Rede%20de%20Intelig%C3%AAncia%20do,%3A%20REsp%202021665%2FMS) acessado em 17/09/2025
[8] https://www.cnj.jus.br/tecnologia-da-informacao-e-comunicacao/centro-de-inteligencia-do-poder-judiciario-cipj/ e www.conjur.com.br/wp-content/uploads/2024/02/Nota-tecnica-tema-1198-STJ-rede-de-inteligencia.pdf acesso em 16/09/2025
[9] https://www.stj.jus.br/sites/portalp/Paginas/Comunicacao/Noticias/2025/20032025-Corte-Especial-decide-em-repetitivo-que-juiz-pode-exigir-documentos-para-coibir-litigancia-abusiva.aspx acessado em 16/09/2025
[10] https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2023/03/relatorio-gratuidade-nos-processos-v6-2023-04-17.pdf, acessado em 12/09/2025