A melhoria da saúde, do bem-estar e da produtividade das sociedades contemporâneas está, em grande parte, ligada ao avanço das pesquisas biomédicas e às melhorias que elas proporcionam à saúde coletiva e individual. Em um tempo marcado pela exponencial produção de informação e conhecimento e, ao mesmo tempo, pela crescente presença de incerteza e risco, as ciências biomédicas assumem papel central como instrumento que salva vidas e previne doenças em um mundo que ainda lida com profundas desigualdades sendo assim um importante instrumento de justiça social.
Nesse contexto de inegável relevância, o progresso das pesquisas biomédicas envolve duplo desafio ético. De um lado, impedir ou dificultar a investigação científica significa dificultar profilaxia, cura e prevenção para inúmeras doenças atrapalhando o alcance de melhores condições de saúde e cuidados adequados aos que enfrentam diversas causas de sofrimento. De outro lado, a pesquisa clínica envolve a participação de voluntários que aceitam se sujeitar a certos riscos para que se concretize o progresso científico, o que impõe um sistema de proteção que assegure a preservação de seus direitos fundamentais de personalidade.
Com notícias da Anvisa e da ANS, o JOTA PRO Saúde entrega previsibilidade e transparência para empresas do setor
Garantir a eticidade da pesquisa e a segurança e interesse do participante de pesquisa é fundamental nesse processo, pois é ele a pessoa chave para os testes que culminam com o avanço científico. Entretanto, o Brasil até o ano passado oferecia garantias muito frágeis do ponto de vista jurídico ao participante de pesquisa.
As normas de ética em pesquisa no Brasil eram norteadas por resoluções editadas pelo Conselho Nacional de Saúde, que criou um sistema de avaliação ética formado por Comitês de Ética em Pesquisa (CEP), órgãos de operação local, e pela Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (Conep), com amplas competências normativa, deliberativa e de credenciamento e acreditação dos CEP. Esse sistema era responsável por garantir que as pesquisas clínicas no Brasil seriam conduzidas de forma ética, respeitando a dignidade e voluntariedade do participante de pesquisa.
Embora o sistema CEP/Conep tenha funcionado relativamente bem até o momento, a falta de segurança jurídica para participantes, pesquisadores e patrocinadores foi sempre um importante entrave para que o Brasil assumisse uma liderança na pesquisa clínica mundial. Em um Estado democrático de Direito, qualquer matéria relativa a direitos fundamentais, deve ser disciplinada por lei em sentido estrito.
É que a lei, expressão da vontade das maiorias representadas no Poder Legislativo, é o instrumento que legitima e garante a precedência dos direitos fundamentais no sistema jurídico. No Brasil, também matéria relativa a criação e extinção de órgãos públicos e a definição original de suas competências deve ser veiculada por lei. Nesse sentido, a Constituição brasileira estabelece, em seu artigo 5º, II, que “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”. E, no art. 84, IV, dispõe que compete ao Presidente da República “sancionar, promulgar e fazer publicar as leis, bem como expedir decretos e regulamentos para sua fiel execução”.
Portanto, nem mesmo o chefe do Poder Executivo pode inovar originariamente o ordenamento jurídico por ato administrativo normativo, nem mesmo no exercício do poder regulamentar, salvo as exceções específicas (art. 84). Se tais matérias não podem ser veiculadas por regulamento, norma administrativa de competência do Chefe do Poder Executivo, é evidente que também não podem por meio de resolução de um órgão administrativo colegiado, como é o caso do Conselho Nacional de Saúde. Tal constatação demonstra a fragilidade de funcionamento jurídico do sistema CEP/Conep como o mesmo era operado.
Nesse sentido, é muito bem-vinda a Lei 14.874/2024, que dispõe sobre a pesquisa com seres humanos e institui o Sistema Nacional de Ética em Pesquisa com Seres Humanos. Além de corrigir o problema da fonte legislativa, fundamental para garantir legitimidade constitucional à regulação da ética nas pesquisas clínicas, a lei altera o regime anteriormente instituído por norma administrativa e frágil juridicamente.
Em primeiro lugar, destacam-se as suas diretrizes gerais, entre outras, a proteção da dignidade, da segurança e do bem-estar do participante em pesquisa, trazendo-lhe pela primeira vez reais direitos; o controle social, manifestado pela pluralidade dos comitês de ética em pesquisa; e o respeito às boas práticas clínicas, indicando deveres éticos e técnicos alinhados a práticas internacionais para a proteção dos voluntários e, de outro lado, destacando o incentivo ao desenvolvimento tecnológico e científico e a eficiência, como salvaguarda de deveres éticos e constitucionais de progresso.
A lei garante que os participantes devem ser informados da pesquisa, seus objetivos e seus riscos e benefícios e concordar livremente em participar assinando um documento (Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, TCLE) preservando sua autonomia e altruísmo. Além disso, a lei esclarece deveres e direitos dos pesquisadores e patrocinadores, trazendo maior garantia e equilíbrio jurídico à ética biomédica no país.
Um ponto que tem gerado debate e protestos de alguns é que a nova lei extingue o sistema CEP/Conep, estabelecendo um sistema baseado em uma instância de análise ética em pesquisa, representada pelos CEP, e uma instância nacional de ética em pesquisa, com competência recursal, corrigindo falha do sistema anterior, em que algumas garantias procedimentais não tinham tratamento adequado. É notório que uma das garantias fundamentais do Estado de Direito é a de que os procedimentos administrativos decisórios assegurem determinados direitos aos interessados, entre eles, o de recorrer das decisões a uma instância administrativa superior.
Outro ponto importante de avanço é a avaliação plural. Ao trazer a pesquisa para a área técnica do Ministério da Saúde e estabelecer que o CEP deve (art. 9, item I) “ser composto de equipe interdisciplinar, nas áreas médica, científica e não científica, de modo a assegurar que, no conjunto, os membros tenham a qualificação e a experiência necessárias para analisar todos os aspectos inerentes à pesquisa, inclusive os aspectos médicos, científicos, éticos e os relacionados às boas práticas clínicas”, a lei garante que pessoas com a devida qualificação e interesse avaliem os projetos trazendo relevância, profundidade e pluralidade nas análises.
Tal previsão é de suma importância para evitar que pesquisas sejam aprovadas ou reprovadas por insuficiência de conhecimento dos responsáveis pela análise. Em um tempo marcado pela permanência das incertezas e fake news, a fragmentação instrutória por meio da participação de agentes de perfis e formações distintas é um dos instrumentos organizatórios para assegurar o tratamento adequado dos déficits informacionais.
Por fim, ressalte-se que a regulamentação da Lei 14.874/2024 deve se ater a minudenciar suas prescrições gerais, não podendo transcender a sua normatividade e tendo como função principal disciplinar de modo mais minucioso os modos de efetivação de seus princípios gerais, de uma Bioética lastreada na dignidade da pessoa humana, princípio de matriz constitucional, por meio de procedimentos que não descurem da estrutura orgânica e das competências instituídas pela lei.
Assine gratuitamente a newsletter Últimas Notícias do JOTA e receba as principais notícias jurídicas e políticas do dia no seu email
Em síntese, a regulamentação administrativa do novo sistema nacional de ética em pesquisa com seres humanos deve ser construída de forma participativa, envolvendo todos os agentes que o compõem, mas não pode subverter as escolhas legislativas, sob pena de violação a normas constitucionais fundantes do nosso Estado de Direito democrático e social.
Concluímos que a Lei 14.874/2024 é muito bem-vinda e representa um marco bioético e administrativo para a pesquisa brasileira. Esperamos que sua tão almejada regulamentação seja célere, precisa e atenda às necessidades do Brasil em se posicionar estrategicamente para o progresso científico.