A impunidade de policiais peruanos que detiveram, torturaram e violentaram sexualmente a indígena quéchua Georgina Gamboa García, então com 17 anos, no fim dos anos 1980, levou o caso à Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH).
A suposta vítima, hoje com 61 anos, relatou os fatos aos juízes do tribunal em audiência pública realizada em Assunção, no Paraguai, nesta quarta-feira (24/9).
Segundo ela, os crimes foram cometidos durante uma série de operações policiais deflagradas no distrito de Vilcashuamán, um povoado de 17 mil habitantes, onde ela vivia com a família, em 25 de dezembro de 1980.
No dia anterior, um fazendeiro vizinho foi morto por um grupo não identificado de indivíduos, supostamente pertencentes à organização comunista Sendero Luminoso. Os policiais, então, ocuparam as comunidades e pediram a moradores do entorno que fossem à delegacia local para prestar depoimento.
Georgina e sua mãe, com seu irmão de apenas oito meses a colo, compareceram voluntariamente à unidade policial e acabaram prontamente detidas. Elas foram liberadas só três dias depois, quando o pai da adolescente compareceu no local.
Contudo, em 17 de janeiro de 1981, membros da Guarda Civil peruana invadiram a casa de Georgina a levaram à força para o cárcere.
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“Perto das 4h, entraram em minha casa, arrombando a porta, e me tiraram da cama. Eu estava com meus irmãos. Me tiraram de lá com a roupa de dormir, sem sapatos. Começaram a revirar tudo. Me perguntavam onde estavam as armas, me tratando como terrorista”, relembra a mulher.
Ela relatou que foi levada para um calabouço, onde foi torturada e violentada sexualmente por sete policiais. Posteriormente, Georgina conta que começou a se sentir doente. Exames médicos constataram que ela havia sido violada e que estava grávida.
“Eu me senti muito mal quando soube que estava grávida. Por um instante, eu quis morrer. Pensava que tinha um monstro dentro de mim, um monstro com sete cabeças e sete mãos. Quando dei à luz, não quis ver minha filha, porque pensava que ela nasceria má”, descreve.
A filha nasceu em outubro de 1981. Rebeca Ruth Gamboa García também participou da audiência pública e afirmou aos juízes que sempre se sentiu rejeitada pela mãe, sem saber por quais motivos. “Minha mãe era fria, distante. Eu não conseguia me aproximar e não sabia por quê. Como minha mãe me tratava diferente, eu me sentia culpada por ter nascido.”
Aos dez anos, Rebeca descobriu que seu padrasto não era seu pai. “Fiquei chocada, muito mal, quando eu soube que não tinha pai. Minha irmã tinha um pai, mas eu não. Isso me doeu bastante. Eu não conseguia entender.”
Ela soube do motivo só aos 21 anos, diz, quando ouviu Georgina depor na Comissão da Verdade e Reconciliação do Peru, um organismo criado para investigar as violações durante o conflito armado no país, entre as décadas de 1980 e 2000.
“Quando ouvi o depoimento da minha mãe, eu soube de tudo. Eu senti muita tristeza, um sentimento muito doloroso. Ter que processar tudo tão rápido, tudo o que sua mãe sofreu, minha cabeça se pôs a pensar muitas coisas e enfim eu me dei conta do porquê minha mãe era assim comigo. Me dei conta que minha mãe era assim comigo porque fui concebida não com amor, não com carinho, mas sim porque a violaram. Isso me dói muito”, afirma Rebeca.
Ela agradeceu a chance de, pela primeira vez, falar sobre o caso a juízes. “Agradeço por me levarem em conta, porque meu país nunca me levou em conta. Espero que haja justiça para minha mãe e para outras mulheres que sofrem, assim como eu, que também são filhas de mulheres violadas”, disse a filha.
À época dos fatos, um inquérito foi aberto para apurar os fatos, mas acabou arquivado, em janeiro de 1982, sob a justificativa de que não era possível identificar os responsáveis. Mais tarde, uma nova investigação foi iniciada, chegando a uma sentença, proferida em 10 de dezembro de 1985, na qual os agentes envolvidos foram absolvidos.
Em razão dos fatos e da falta de uma investigação adequada, a CIDH sustentou que o Estado é responsável pela violação dos direitos à integridade pessoal, liberdade pessoal, garantias judiciais, vida privada e familiar, direito à infância e proteção judicial.
Para a Comissão, as violações sofridas por Georgina e seus familiares são parte de um contexto de violência sexual e tortura generalizada e sistemática contra mulheres durante o conflito armado no Peru na década de 80. Por isso, o Estado deve ser punido.
A perita Julieta Beatriz Di Corleto, advogada e doutora em História, defendeu que o julgamento na Corte IDH leve em conta o delito autônomo de “gravidez forçada”, aplicado pela primeira vez em 2021, pelo Tribunal Penal Internacional, no caso Ongwen.
“A gravidez não foi uma consequência natural, inclusa no que representa a violência sexual. Não é só um efeito colateral. É um dano autônomo, independente, uma entidade jurídica independente”, argumentou.
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A perita sugeriu que os juízes julguem a interrelação das violações sofridas. “É preciso reconhecer a interrelação do dano – a violência sexual, a gravidez forçada e a maternidade imposta. Também é importante trazer o conceito do dano transgeracional, que permite dar conta de como determinados sofrimentos, seja por manifestações genéticas ou sociais, se transferem para as diferentes gerações”.
Os representantes do Peru, por sua vez, sustentaram que a Corte IDH não tem competência temporal e material para julgar o caso.
“A vigência das convenções é posterior à data dos fatos. Além disso, tendo em conta a jurisprudência interamericana, recordamos que fatos como tortura ou violação sexual não têm um caráter continuado. Com base nisso, consideramos que esta Corte carece de competência”, disse Domingo Enrique Rojas Chacaltana, advogado da Procuradoria Pública Especializada Supranacional do Peru.
Com a realização da audiência pública, as partes agora têm um mês para apresentar as alegações finais escritas. Depois disso, os juízes podem emitir sentença a qualquer momento.