Caso Amazon Prime: acordo com FTC é marco para proteção de consumidores

Na primeira oportunidade que tive de abordar o tema dos padrões manipulatórios (dark patterns ou deceptive patterns), explicando como a arquitetura enganosa do meio virtual pode ser mais importante do que o preço para direcionar a decisão do consumidor, mencionei a ação que a Federal Trade Commission (FTC) norte-americana havia ingressado contra a Amazon e alguns dos seus executivos.

A empresa foi acusada de inscrever consumidores no Amazon Prime sem o respectivo consentimento (non-consensual subscriptions) e também de sabotar ou dificultar as tentativas para cancelar a assinatura (cancellation trickery)[1].

Conheça o JOTA PRO Poder, plataforma de monitoramento que oferece transparência e previsibilidade para empresas

Para a FTC, tal prática, implementada por anos, possibilitou que a Amazon intencionalmente enganasse milhões de consumidores, a partir da utilização de diversas estratégias, dentre as quais se destacam as seguintes:

Subscrição não obrigatória (non-consensual enrollment), uma vez que a empresa não obteria o consentimento informado antes de cobrar do consumidor pelo serviço;
Ação forçada (forced action), descrita como elementos de design que requerem do usuário a prática de certas ações para completar um processo ou acessar determinada funcionalidade, como o direcionamento do consumidor para subscrever o Prime antes de lhe permitir completar a sua compra independente;
Interferência da interface (interface interference), descrita como elementos de design que manipulam a interface do usuário de forma a privilegiar certos tipos de informação, enganando os consumidores. Exemplos seriam (i) enunciar os termos e condições do Prime apenas no momento da conclusão da compra em uma fonte tão pequena que poderia nem ser notada pelo consumidor, (ii) uso de repetições e de cores para direcionar a atenção do consumidor para as palavras “free shipping” e não para o preço do Prime, (iii) estratégias que direcionam o consumidor para o fluxo do Prime sem cancelamento ou por meio de ícones próximos à opção de cancelamento que evocam ansiedade e medo nos consumidores;
Obtruction or roach model technique, compreendido como elementos de design que envolvem um processo intencionalmente complicado e com passos desnecessários pensados para desestimular o consumidor de uma ação, que, no caso, seria o cancelamento do Prime;
Misdirection, visto como a estratégia de focar a atenção do consumidor em uma coisa para distraí-lo de outra. No caso, alega a FTC que a Amazon teria apresentado escolhas assimétricas para induzir e facilitar a inscrição no Prime, bem como usado atrativos para direcionar os consumidores (tais como “remind me later” and “keep my benefits” ao invés de “continue to cancel”);
Sneaking, que diria respeito a elementos de design que escondem ou disfarçam informações relevantes ou retardam a sua prestação. No caso, a FTC acusava a Amazon de esconder o preço do Prime e dificultar o encontro dos termos e condições do serviço;
Confirm-shaming, que envolvem elementos de design que usam frases e expressões com alto grau de emotividade, a fim de imputar culpa ao consumidor na hipótese da escolha de uma determinada opção. Um exemplo seria a expressão “No thanks, I like full price” quando o consumidor recusava o serviço.

Depois de algum tempo da reação inicial da empresa, que negou a ilicitude das práticas, recentemente houve a excelente notícia de que a Amazon resolveu fazer um acordo com a FTC, comprometendo-se a pagar a quantia de US$ 2,5 bilhões para encerrar o caso.

O acordo foi amplamente noticiado pela FTC, sendo considerado histórico[2], uma vez que, por meio dele, a Amazon pagará US$ 1 bilhão como penalidade – a maior penalidade da história da FTC – e ainda pagará US$ 1,5 bilhão para ressarcir os consumidores lesados com suas práticas.

Adicionalmente, o acordo exige que a Amazon cesse com suas práticas ilícitas e faça modificações significativas para a adesão e o cancelamento do Amazon Prime. Dentre as medidas previstas no acordo estão:

A inclusão de um botão claro e direto para que os consumidores possam recusar o serviço, evitando práticas de shaming, como a utilização de dizeres como “No, I don’t want Free Shipping”.
A inclusão de conteúdos claros, completos e transparentes sobre todos os termos materiais do serviço durante o processo de adesão, tais como custos, data e frequência da cobrança aos consumidores, se há ou não a renovação automática e também os procedimentos de cancelamento.
A criação de um caminho fácil para que os consumidores cancelem o serviço, usando o mesmo método que os consumidores usam para assiná-lo e com as ressalvas de que o processo não pode ser difícil, não pode ter custos e não pode consumir muito tempo.
A contratação de um supervisor externo independente para monitorar o cumprimento do acordo.

Trata-se de relevantíssimo precedente, não apenas porque a empresa reconheceu o problema, como também porque, sem prejuízo das penalidades, comprometeu-se a modificar as suas práticas e a ressarcir todos os consumidores prejudicados.

Ainda que o acordo não beneficie diretamente consumidores não americanos, é inequívoco que pode ser utilizado como referência para consumidores do mundo todo, ainda mais em países que, como é o caso do Brasil, embora não tenham legislação específica sobre o assunto, apresentam regras gerais de proteção a cidadãos e consumidores contra práticas manipulatórias.

Como também já tive a oportunidade de explorar em coluna anterior[3], muitas das práticas que se encaixam em padrões manipulatórios podem ser consideradas enganosas à luz da legislação brasileira, na medida em que aniquilam a autodeterminação dos consumidores e violam vários dos seus direitos básicos, como a liberdade e escolha e igualdade nas contratações (CDC, art. 6º, II) e a proteção contra métodos comerciais coercitivos ou desleais (CDC, art. 6º, IV).

Além disso, várias dessas práticas subsumem-se a condutas vedadas pelo CDC, como a de se aproveitar da fraqueza ou ignorância do consumidor para impingir-lhe produtos ou serviços (CDC, art. 39, IV) ou exigir do consumidor vantagem manifestamente excessiva (CDC, art. 39, V).

A depender do caso, pode-se cogitar inclusive de defeitos do negócio jurídico, como dolo ou lesão, além da violação direta de regras sobre o dever de informar e sobre a vedação de publicidade abusiva ou enganosa. Se estivermos falando de práticas que procuram subverter o processo decisório do consumidor, por meio de diversas técnicas que vão do vício psicológico até a manipulação digital, pode-se cogitar igualmente da aplicação da LGPD, já que tais práticas são usualmente implementadas a partir da coleta indevida de dados pessoais dos consumidores e da exploração das suas vulnerabilidades.

Assine gratuitamente a newsletter Últimas Notícias do JOTA e receba as principais notícias jurídicas e políticas do dia no seu email

Dessa maneira, é de se comemorar o acordo recentemente feito pela Amazon com a FTC, esperando-se que este seja um marco na proteção dos consumidores, até porque o problema, longe de se limitar apenas a uma empresa, tem sido uma característica recorrente do chamado capitalismo de dados ou de vigilância.

A expectativa é de que tal acordo possa redirecionar o atual estado de coisas, criando desincentivos para que as empresas continuem se aproveitando do design e da arquitetura do mundo digital para explorar indevidamente os seus usuários, deles extraindo vantagens indevidas.

[1] https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/constituicao-empresa-e-mercado/o-que-sao-dark-patterns

[2] https://www.ftc.gov/news-events/news/press-releases/2025/09/ftc-secures-historic-25-billion-settlement-against-amazon

[3] https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/constituicao-empresa-e-mercado/como-conter-as-dark-patterns

Generated by Feedzy