O leitor que acompanha a coluna sabe que os desfechos desses dois casos eram ansiosamente aguardados: a) o tema 950 da Repercussão Geral do STF (RE 632.115), sobre a inexistência de responsabilidade civil do Estado por ato protegido por imunidade parlamentar; e b) a ADPF 424, assentando a competência exclusiva do STF para autorizar medidas de busca e apreensão nas dependências do Congresso Nacional e em imóveis funcionais ocupados por parlamentares, inclusive nos casos em que a investigação não tenha como alvo direto o parlamentar. O julgamento de ambos ocorreu pelo plenário virtual finalizado no último dia 26 de setembro.
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A coluna de hoje se dedica a noticiar e comentar os julgamentos desses dois assuntos caros à temática do Direito Parlamentar e que, em essência, compartilham o mesmo fundamento básico: a natureza e a finalidade das prerrogativas conferidas aos parlamentares (no tema 950, a imunidade material do art. 53, caput, da CF; na ADPF 424, o foro por prerrogativa de função do art. 53, § 1º, c/c art. 102, inciso I, alínea b, da CF).
Tema 950 da Repercussão Geral do STF
A problemática da responsabilidade civil decorrente de ato acobertado pela imunidade parlamentar já tinha sido abordada aqui e aqui, quando se alertava para o perigo de um eventual entendimento que pudesse diminuir ainda mais o âmbito da imunidade parlamentar ou implicar uma autocensura, ainda que indireta, resultante do constrangimento pela eventual responsabilização da pessoa jurídica de direito público.
O caso concreto do RE 632.115 (leading case do tema 950) dizia respeito às falas de um deputado estadual do Ceará que, em discurso na tribuna da Assembleia Legislativa, acusou o juiz de Canindé de condutas ilícitas e criminosas (corrupção, conluio com o prefeito, omissão dolosa em processos etc.). O juiz ajuizou ação de indenização por danos morais, não contra o deputado (protegido pela imunidade parlamentar), mas sim contra o estado do Ceará, com base na responsabilidade objetiva (art. 37, § 6º, CF).
O Tribunal de Justiça do Ceará, mesmo considerando que as falas do deputado não ultrapassaram os limites da imunidade material, reconheceu o direito do juiz à indenização, afirmando que a imunidade não excluiria a responsabilidade objetiva do estado. Contra tal decisão, o estado do Ceará interpôs o recurso extraordinário, sustentando ofensa ao art. 53, caput, da CF (imunidade material).
Por unanimidade, o STF decidiu que a imunidade parlamentar material do art. 53, caput, da CF, é causa de exclusão da responsabilidade civil objetiva do estado, nos termos do art. 37, § 6°, da CF. Assim, deu provimento ao RE do estado do Ceará para julgar improcedentes os pedidos formulados na inicial.
Na ocasião, foi aprovada a seguinte tese: “1. A imunidade material parlamentar (art. 53, caput, c/c art. 27, § 1º, e art. 29, VIII, CF/1988) configura excludente da responsabilidade civil objetiva do Estado (art. 37, § 6º, CF/1988), afastando qualquer pretensão indenizatória em face do ente público por opiniões, palavras e votos cobertos por essa garantia. 2. Nas hipóteses em que a conduta do parlamentar extrapolar os limites da imunidade material, eventual responsabilização recairá de forma pessoal, direta e exclusiva sobre o próprio parlamentar, sob o regime de responsabilidade civil subjetiva”.
Do voto do ministro relator Luís Roberto Barroso, colhe-se que “(…) a imunidade parlamentar material configura cláusula constitucional que reforça, em favor dos representantes eleitos, o direito fundamental à liberdade de expressão como condição de possibilidade para o exercício livre, independente e crítico da representação política no sistema democrático. A inviolabilidade conferida aos parlamentares não constitui um privilégio pessoal, mas uma prerrogativa funcional cuja razão de ser está diretamente vinculada à preservação da independência do Poder Legislativo, ao livre debate de ideias e à fiscalização dos demais Poderes. Em outros termos, trata-se de um instrumento institucional de proteção da democracia, permitindo que os representantes eleitos se manifestem de forma livre, sem receio de retaliação ou sanções civis ou penais por seus pronunciamentos no exercício do mandato”.
Sem prejuízo, em linha com a interpretação mais recente do STF quanto a essa prerrogativa, o voto do relator registra que a imunidade parlamentar “não se presta a proteger o parlamentar que dela se utiliza como escudo para veicular manifestações abusivas absolutamente desconectadas da função legislativa”, como, por exemplo, “manifestações meramente pessoais, sem vínculo com o debate democrático ou com a atividade legislativa”.
Nesse sentido, cita diversos julgados em que o STF afastou a incidência da imunidade parlamentar, assentando que essa prerrogativa “não foi concebida para amparar incitação à prática de crime, discursos de ódio, ataques às instituições democráticas ou imputações sabidamente falsas de fatos, proferidas com dolo ou manifesta negligência pela verdade”. Assim, pavimentou o caminho para reiterar a condição para o reconhecimento da imunidade parlamentar, qual seja, a “existência de nexo de vinculação com o exercício legítimo do mandato”.
Passando às considerações sobre a responsabilidade civil do estado com base no art. 37, § 6º, da CF, o voto consigna o entendimento de que a imunidade do art. 53, caput, da CF configura excludente da responsabilidade civil objetiva do estado, afastando qualquer pretensão indenizatória em face do ente público.
Apresenta cinco razões como fundamento: 1) o elemento teleológico; 2) o elemento sistemático; 3) o princípio da proporcionalidade; 4) a dimensão objetiva da liberdade de expressão; e 5) a colisão da pretensão (a responsabilização civil do Estado por discursos cobertos pela imunidade material parlamentar) com a arquitetura representativa da CF.
A primeira razão, o elemento teleológico, reconhece que a mera “ameaça de condenação do próprio Estado a indenizar terceiros por danos eventualmente causados por discursos protegidos produziria, por via transversa, um indesejável efeito de censura ou de inibição (chilling effect) sobre o debate público”, o que desnaturaria a razão de ser da imunidade material.
Nas exatas palavras do voto: “A ameaça de judicialização do discurso, mesmo dirigida apenas contra o Estado, também pode se tornar um instrumento de intimidação por parte de adversários políticos. Some-se a isso o controle eleitoral: quando o custo das opiniões, palavras e votos do parlamentar deixa de ser apenas político e passa a ser orçamentário, transferindo à coletividade o ônus das falas, os mesmos cidadãos que financiam o gasto podem reprovar nas urnas tal destinação, gerando sanção reputacional e um incentivo adicional à autocensura”.
A segunda razão, o elemento sistemático, preconiza a leitura em conjunto das normas e o reconhecimento de que determinadas normas influenciam o sentido e o alcance de outras. No caso, considerou-se a imunidade material uma norma estruturante e axiologicamente superior dentro do sistema (porquanto destinada a resguardar o núcleo da representação democrática, a independência do Legislativo e a separação de Poderes), e cuja leitura à luz da liberdade de expressão (que goza de proteção preferencial) reforça a necessidade de reconhecê-la como a excludente de responsabilidade civil do estado. Consequentemente: “Quando o ato estiver protegido pela imunidade material, a responsabilização do parlamentar deve se dar no âmbito político, com base no art. 55, §§ 1° e 2º, da Constituição, e não no plano civil”.
A terceira razão, o princípio da proporcionalidade, indica a prevalência de meios alternativos à proteção do direito à honra e à reparação integral do dano moral do ofendido, que sejam menos gravosos à liberdade de expressão e ao princípio democrático, como os meios políticos, disciplinares e eleitorais.
A quarta razão, a dimensão objetiva da liberdade de expressão, invoca que a proteção da liberdade de expressão dos parlamentares “está associada a ações estatais positivas para que a liberdade de expressão seja adequadamente promovida e irradie-se por toda a ordem jurídica”. É dizer, dessa dimensão decorre um dever estatal de “reconhecer salvaguardas materiais e processuais adequadas, capazes de dar efetividade ao direito à liberdade de expressão no âmbito do exercício do mandado parlamentar”.
A quinta razão, a colisão com a arquitetura representativa da CF, justifica a necessidade de evitar um veto orçamentário majoritário consistente no incentivo para “para policiar, desestimular ou silenciar discursos dissidentes”. Nas palavras do voto: “Em vez de garantir a circulação de ideias minoritárias (muitas vezes essenciais à fiscalização e ao avanço de direitos), o sistema passaria a homogeneizar o debate por constrangimento fiscal indireto”.
Na sequência, o ministro relator registra que, nas situações em que a conduta do parlamentar extrapola os limites da imunidade, a responsabilidade recai de forma pessoal, direta e exclusiva sobre o próprio parlamentar.
O ministro Alexandre de Moraes apresentou voto acompanhando o relator, ao passo que o ministro André Mendonça acompanhou o relator com ressalvas. Em seu voto-vogal, frisou que do julgamento do tema 950 não se pode extrair quaisquer ordens sobre os limites da imunidade material.
ADPF 424
Tinha-se mencionado a ADPF 424 no texto inaugural da Defensor Legis. O ajuizamento se deu no contexto da Operação Métis, deflagrada em 2016 por determinação do juízo da 10ª Vara Federal da Seção Judiciária do DF, para apurar a conduta de policiais legislativos suspeitos de embaraçar as investigações da Lava Jato para beneficiar senadores.
Na ocasião, tinham sido apreendidos equipamentos e documentos destinados à inteligência e segurança do Congresso Nacional. Outros episódios também foram mencionados na petição inicial e no aditamento.
Na ação, a Mesa do Senado pedia a interpretação conforme do art. 13, incisos II e III, do CPP, para declarar que eventual decisão judicial ou diligência policial a ser cumprida nas dependências do Congresso Nacional e nos imóveis funcionais ocupados por parlamentares somente seja executada após ratificação por ministro do STF e comunicação à Polícia Legislativa.
Por unanimidade, o STF conheceu parcialmente da ADPF e, na parte conhecida, julgou parcialmente procedente o pedido para declarar a recepção do art. 13, inciso II, do CPP e conferir-lhe interpretação conforme à Constituição, a fim de fixar a competência exclusiva do STF para autorizar medidas cautelares probatórias a serem cumpridas nas dependências do Congresso Nacional e em imóveis funcionais ocupados por parlamentares.
Conforme o voto do ministro relator Cristiano Zanin, o cerne da argumentação para fixar a competência exclusiva do STF reside em dois pilares: 1) na finalidade da prerrogativa relativa ao foro especial, que é a preservação da independência e autonomia no exercício do mandato parlamentar; e 2) na lógica dos freios e contrapesos da CF. Isso porque só o STF pode substituir coercitivamente a recusa do presidente da Casa Legislativa, em relação às dependências desta, ou do próprio parlamentar, no caso de gabinetes e imóveis funcionais por eles ocupados, quanto à permissão de ingresso para realização de busca e apreensão.
Assim, a ordem para adentrar nesses espaços não poderia vir de juiz de primeira instância. Restou reconhecido, no entendimento contrário, um risco de dano às prerrogativas parlamentares, bem como de violação de direitos fundamentais dos parlamentares, como a privacidade e a intimidade, sem observância do juiz natural.
Daí que, mesmo que a investigação não tenha como alvo direto o parlamentar, conforme o entendimento do relator: “a apreensão de documentos ou aparelhos eletrônicos dentro do Congresso Nacional ou em imóvel funcional de parlamentar repercute, mesmo que indiretamente, sobre o desempenho da atividade parlamentar e, consequentemente, sobre o próprio exercício do mandato, o que atrai a competência do Supremo Tribunal Federal (art. 53, § 1º, c/c art. 102, I, “b”, Constituição Federal)”.
De forma muito clara, o ministro relator enfatizou que, com esse entendimento, não se trata de estender o foro por prerrogativa de função a pessoas diversas dos membros do Congresso Nacional, mas, sim, de fixar os efeitos da prerrogativa funcional no curso de quaisquer investigações no que se refere à realização de diligências nas dependências das Casas Legislativas ou imóveis funcionais, que caracterizam, respectivamente, local de trabalho ou de moradia de autoridades detentoras de foro especial.
O ministro Moraes apresentou voto acompanhando o relator. Já o ministro Edson Fachin acompanhou o relator com ressalvas. Em seu voto-vogal, fazendo menção a seus entendimentos anteriores, sustentou que a incidência do foro por prerrogativa de função está atrelada ao critério funcional (quanto a fatos ocorridos exercício do mandato parlamentar).
Do decidido na ADPF, não ficou muito claro como o novo entendimento será operacionalizado: se os autos integrais subirão para que o próprio STF expeça o mandado; se será expedido um exequatur, a partir do mandado já expedido na origem; se a ratificação ocorrerá na forma de um incidente próprio a ser processado na forma do regimento interno do STF etc. Será importante a definição desse ponto, inclusive porque, pela simetria, o modelo deverá ser replicado pelos demais tribunais em relação às Assembleias Legislativas.
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Ainda assim, as duas decisões confirmaram o alcance da proteção institucional do Legislativo.
Como se dizia no início, em comum, os dois julgados enfatizaram que tanto a imunidade parlamentar material, quanto o foro por prerrogativa de função não constituem privilégios pessoais, mas mecanismos de defesa do mandato parlamentar, voltados para garantir independência e autonomia no exercício da função.
Em ambos os casos, restou reconhecida a importância instrumental da proteção das prerrogativas parlamentares: ao final, prestam-se à preservação da independência e autonomia do próprio Poder Legislativo, à separação de poderes e à integridade do regime democrático. Por isso, são duas vitórias.