Nos últimos anos, a independência e a autonomia do Banco Central tornaram-se temas centrais do debate público. Embora muitas vezes tratados como sinônimos, são conceitos distintos, com implicações político-jurídicas igualmente distintas. O equívoco não é apenas semântico: confundir independência com autonomia pode induzir a diagnósticos errados e a reformas legislativas temerárias. Avaliar a PEC 65/2023 exige, portanto, ir muito além do jogo de palavras.
A independência de um banco central diz respeito à sua capacidade de definir metas e objetivos de política monetária sem interferência do governo. No caso brasileiro, essa independência não existe, pois a meta de inflação é estabelecida pelo Conselho Monetário Nacional (CMN). Desde o Plano Real, o CMN teve sua composição reduzida e hoje reúne apenas dois ministros – Fazenda e Planejamento – além do presidente do Banco Central.
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Trata-se, portanto, de uma instância de natureza política, na qual a definição das metas permanece sob responsabilidade do governo eleito. Esse arranjo, longe de ser um detalhe, constitui um dos principais mecanismos de prestação de contas e de responsabilização da autoridade monetária.
Mais propriamente, o BC detém autonomia operacional. Uma vez definida a meta de inflação pelo CMN, a instituição escolhe os instrumentos para atingi-la. Um relevante exemplo é a fixação da taxa Selic pelo Comitê de Política Monetária (Copom). Nesse aspecto, o BC dispõe de liberdade técnica para agir, ainda que seus objetivos já estejam previamente delimitados por um órgão político.
No entanto, a autonomia de um banco central não se resume à definição de instrumentos de política pública. A Lei Complementar 179, de 2021, também consolidou a autonomia técnica, administrativa e financeira da instituição, ao fixar mandatos de quatro anos para presidente e diretores, não coincidentes com o do presidente da República. O objetivo institucional é o de proteger o Banco Central de pressões políticas imediatas.
Esse aspecto da autonomia técnica busca “blindar” a política monetária contra o uso eleitoral. É o problema da inconsistência temporal (como formularam Kydland e Prescott em 1977): governos cedem à tentação do curto prazo e podem comprometer a estabilidade monetária futura. A autonomia administrativa garante ao BC a gestão de seus próprios quadros e recursos, enquanto a financeira assegura à instituição a gestão de seus ativos e operações.
O que a LC 179, porém, ainda não solucionou é a lacuna regulatória para avaliar se diretores do BC cumprem, de fato, os múltiplos objetivos previstos em lei – para além das metas inflacionárias. Como apontou a jurista Élida Graziani, o banco ganhou em discricionariedade técnica no tempo, mas não os parâmetros para avaliação ampla de suas distintas ações de política pública. Autonomia sem a correspondente prestação de contas e responsabilização pode ser uma contradição perigosa.
É, nesse contexto, que surge a discussão sobre a chamada autonomia orçamentária. Ela permitiria ao Banco Central elaborar sua própria proposta de orçamento, fixando despesas autorizadas em lei orçamentária anual. No entanto, a autonomia orçamentária não é sinônimo de independência financeira absoluta. Ela ainda estaria sujeita ao princípio da reserva legal e ao controle orçamentário do Estado brasileiro.
A PEC 65 vai muito além da simples autonomia orçamentária: propõe transformar o BC em entidade de direito privado. A mudança legislativa, de caráter radical, faria o Estado brasileiro abrir mão de prerrogativas típicas da Fazenda Pública, como o prazo em dobro para recorrer, a execução fiscal e o regime de precatórios, enfraquecendo a proteção jurídica dos recursos públicos.
Além disso, ela fragilizaria a estabilidade de servidores, hoje protegidos pelo regime jurídico único. Como destacou a ministra Esther Dweck, a estabilidade dos servidores não é um privilégio individual, mas um escudo institucional: protege o Estado contra pressões políticas e a captura de suas funções essenciais. Transformados em empregados regidos pela CLT, também perderiam garantias previdenciárias, comprometendo a atratividade da carreira e, paradoxalmente, a própria autonomia técnica do BC.
A PEC 65 também afronta princípios orçamentários clássicos, como universalidade e unidade de caixa, que exigem a centralização de receitas no Tesouro Nacional. Fragmentar o orçamento, como alertou o economista André Lara Resende, significa regressão a um cenário pré-Plano Real, marcado pela opacidade e pela balcanização fiscal. O resultado seria um orçamento fictício e ineficaz, em desacordo com as recomendações internacionais.
Para além das questões técnicas, há ainda vícios jurídicos. O advogado-geral da União, Jorge Messias, já apontou problema de iniciativa na PEC 65, uma vez que o BC admitiu, em resposta à Lei de Acesso à Informação, não ter realizado estudos de impacto para a transformação em pessoa jurídica de direito privado. Como sublinhou o senador Alessandro Vieira, trata-se de uma mudança substancial sem justificativa de interesse público.
A crítica central, portanto, não é contra a busca por maior eficiência do Banco Central, mas contra a ideia de que mais autonomia, a qualquer custo, é sempre positiva. A autonomia deve ser entendida em suas diversas dimensões – técnica, operacional, administrativa, financeira e orçamentária – e avaliada conforme princípios constitucionais, boas práticas internacionais e a existência de mecanismos de prestação de contas e responsabilização.
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O ministro da Fazenda, Fernando Haddad, sintetizou a questão ao afirmar que não existe “autonomia total”. Para ele, a prioridade deve ser fortalecer a capacidade regulatória e digital do banco, sem transformar a pauta institucional em demanda corporativa. Nesse sentido, existem caminhos mais consistentes para ampliar os recursos do Banco Central sem comprometer princípios constitucionais nem fragilizar servidores.
Independentemente das preferências ideológicas, é imperativo reconhecer que autonomia e independência não são conceitos equivalentes, nem tampouco garantias de melhor governança econômica. Antes de se embarcar em reformas constitucionais arriscadas, o país precisa responder à pergunta fundamental: de qual autonomia estamos falando?