A reforma administrativa não é um tema recente. Desde a década de 1930, com a criação do Departamento Administrativo do Serviço Público (DASP), passando pelo Decreto-Lei 200/67, que trata da organização da administração federal e da reforma implementada à época, até a redemocratização, quando foi instituído o Regime Jurídico Único dos servidores civis federais (Lei 8.112/90), que consolidou a estabilidade como pilar do serviço público para assegurar autonomia e imparcialidade, diversos marcos legais promoveram mudanças significativas tanto na estrutura da Administração Pública quanto na vida das servidoras e dos servidores do Estado.
Mais recentemente, o tema voltou à luz com maior intensidade a partir da discussão da PEC 32/2020. Essa proposta, que previa uma nociva precarização do trabalho no setor público, foi “derrotada” em 2021, após forte atuação das entidades sindicais e associações de servidores públicos.
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Uma nova empreitada para Reforma da Administração Pública teve início em 21 de maio deste ano, com a criação do Grupo de Trabalho da Reforma do Estado, na Câmara dos Deputados. O GT, criado por iniciativa do deputado Zé Trovão (PL-SC) e coordenado pelo deputado Pedro Paulo (PSD-RJ), fixou prazo de 45 dias para apresentação de um relatório, mas, passados três meses desde a criação, o documento ainda permanece envolto em mistério, e nenhum texto ou proposta legislativa foi de fato apresentada.
Em que pese o fato de que, em audiências públicas, entrevistas e coletivas de imprensa, o coordenador do GT tenha destacado que os parlamentares defendem como objetivo central da proposta a melhoria da prestação de serviços públicos por meio da “modernização” e do “aperfeiçoamento” do atual sistema administrativo nas três esferas de governo — municipal, estadual e federal —, as informações já divulgadas apontam um modelo burocrático de Administração Pública e não uma reforma capaz de moldar o serviço público para enfrentar os novos desafios da democracia brasileira.
A reforma administrativa que se desenha no horizonte busca “flexibilizar” a estabilidade dos servidores, ao pavimentar o caminho para novas formas de contratação, sobretudo com vínculos temporários.
Além disso, o modelo tende a aproximar a gestão pública da lógica privada de administração de pessoas, ampliando o poder das chefias imediatas, que passariam a ter maior liberdade para contratar e demitir conforme as necessidades do serviço e os “resultados” apresentados. Essa proposta se sustenta no argumento de que tal flexibilidade traria mais eficiência e dinamismo à Administração Pública, alinhando-a às demandas atuais de governança.
Nesse contexto, é pertinente nos questionarmos se o modelo administrativo que serve de inspiração para a reforma administrativa seria o do Itamaraty, com uma estrutura piramidal e uma gestão de pessoas marcada pela competitividade entre pares, pela discricionariedade e pela personalização das decisões.
De fato, o Ministério das Relações Exteriores exemplifica esse modelo: a estrutura administrativa é compartimentalizada e os sistemas de promoção e remoção são complexos e opacos, baseados na discricionariedade das chefias, o que tende a perpetuar o status quo. Há décadas, são as servidoras e os servidores do MRE que enfrentam cotidianamente os problemas que esse modelo arcaico de administração gera em diferentes áreas de atuação do ministério.
Ao propor maior flexibilidade para contratações temporárias e a centralização do poder avaliativo nas chefias, a reforma administrativa parece replicar um modelo de gestão próximo ao que existe hoje no Itamaraty. O mesmo ocorre com o famoso “controle e obediência”, em que os órgãos podem conceder bônus financeiros por resultados aos servidores, mas a critério das chefias imediatas, reforçando uma relação de dependência hierárquica, também presente no MRE.
A reforma parece também buscar a desmobilização dos trabalhadores e o enfraquecimento dos sindicatos, ao fragilizar a estabilidade por meio da ampliação de vínculos temporários, gerar insegurança jurídica pela fragmentação legislativa e, sobretudo, ao não prever espaços institucionais de negociação coletiva.
A experiência do Itamaraty serve como alerta para os efeitos nocivos de ambientes hierarquizados e marcados pela discricionariedade. Além do adoecimento e da insatisfação entre os servidores, que têm provocado uma evasão inédita nas carreiras do Serviço Exterior Brasileiro nos últimos anos, a baixa diversidade e a rigidez hierárquica criam um terreno fértil para assédio e discriminação, prejudicando, em última instância, a própria qualidade da prestação do serviço público.
Por outro lado, mesmo diante dos pontos negativos associados à proposta de reforma administrativa, o MRE apresenta uma experiência positiva que pode orientar movimentos de reestruturação e modernização das carreiras no Poder Executivo. Desde 2023, com a instalação da Mesa Setorial de Negociação, a primeira deste tipo entre órgãos públicos federais, e com as rodadas das Mesas Específicas e Temporárias de Negociação, conduzidas pelo Ministério da Gestão e da Inovação em Serviços Públicos, o órgão tem demonstrado que, quando existem espaços de diálogo institucionalizados e reconhecimento da legitimidade sindical, é possível avançar em pautas estruturantes.
Sendo assim, diante do evidente impacto que qualquer reforma terá para milhares de servidoras e servidores em todo o país, é necessário que haja participação ativa das categorias no processo legislativo. E isso não está acontecendo: as poucas audiências públicas realizadas deram espaço de poucos minutos para a manifestação sindical, restringindo a participação a uma seleção aleatória de entidades, que, embora legítimas, não refletem a pluralidade de realidades do funcionalismo público.
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Se a reforma administrativa pretende, de fato, fortalecer o serviço público e melhorar a qualidade dos serviços prestados à população brasileira, é essencial que seja adotado um modelo de negociação institucionalizada para assegurar a participação das entidades sindicais representantes dos servidores do Estado em sua construção.
A experiência recente do MRE mostra que a existência de um espaço oficial de negociação entre a alta administração e a bancada sindical é um caminho real para a modernização do Estado. Do mesmo modo, a experiência pretérita do Ministério das Relações Exteriores demonstra que a reforma não pode ser uma mera adaptação às demandas de uma gestão empresarial ou privatista, mas sim um esforço genuíno para transformar o serviço público em uma ferramenta ainda mais eficaz para o atendimento às necessidades da população brasileira.