Química entre Trump e Lula não alivia trabalho do STF pela democracia

Ver para crer. Assim resume-se o ceticismo salutar que todos devemos ter ao analisar com realismo os reais efeitos de um encontro entre o presidente americano Donald Trump e seu colega brasileiro Luiz Inácio Lula da Silva. Ainda mais porque, no pós-condenação do golpista Jair Bolsonaro et caterva, soa tentador proclamar que a democracia está à salvo de aventureiros e, sob o comando de Edson Fachin, o Supremo Tribunal Federal (STF) terá uma atuação mais discreta e até mesmo se engajaria num processo de autocontenção da mais elevada corte do país.

Falta, porém, combinar com a direita, ainda que sua versão mais extrema venha provocando uma fragmentação desse campo político com vistas às eleições de 2026. Inelegível, Bolsonaro parece ter deixado a contragosto o espólio da extrema direita para seu filho 03, o deputado federal Eduardo, que desde fevereiro passado está nos EUA armando um golpe externo contra o Brasil. Esse plano teve início de fato com o tarifaço de 50% que, anunciado por Trump em julho, buscava afastar o ex-presidente da cadeia e criar dificuldades para o governo Lula 3.

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O STF não vergou e manteve-se fiel à sua missão constitucional. Os protestos convocados pela esquerda em 21 de setembro atraíram gente suficiente para além da bolha canhota às ruas para emparedar os golpistas do Legislativo, que antes flertavam com anistia e, agora, defendem uma lei de dosimetria para reduzir as penas aplicadas aos que participaram do 8 de janeiro de 2023 e, por extensão, de seus atos preparatórios.

Embora o encontro de Trump e Lula nos bastidores da abertura da Assembleia Geral da ONU em 23 de setembro não tenha sido nada fortuito, a conexão entre as diplomacias americana e brasileira indica menos distensão do que a continuidade da crise bilateral. Isso porque Trump elogiou Lula em seu discurso, apontando haver uma “química” entre ambos, mas deixou claro que o Brasil vai se dar mal se não se alinhar aos Estados Unidos.

Para arrematar, o secretário de Comércio dos EUA, Howard Lutnick, disse em entrevista neste domingo (28/9) que é necessário que o Brasil seja consertado de modo a não mais adotar medidas prejudiciais para os americanos.

O que Lula tem a oferecer a Trump não é alinhamento automático, mas uma relação de respeito mútuo para construir uma agenda de trocas positivas. À potência em declínio lhe interessa apenas um jogo de soma zero, em que pretensos aliados muito cedem enquanto renunciam à autonomia de sua política externa e, portanto, a aproximação com polos de poder alternativos.

O ideal para Trump, portanto, seria ter um Bolsonaro no Planalto. Eduardo prontifica-se a ser candidato, mesmo sob investigação por obstrução de Justiça no julgamento do golpe. Há um precedente histórico para que alguém mesmo fora do país possa concorrer à presidência e ser eleito. Foi o caso de Epitácio Pessoa, eleito para o período 1919-1922 enquanto representava o Brasil na conferência de Versalhes, que negociou os termos de rendição final dos derrotados na Primeira Guerra Mundial, em particular as reparações a serem pagas pelo Império Alemão.

Eduardo tende a ter entre 10% e 20% dos votos válidos, pois atrai apenas o voto da extrema direita. Por isso, para o governo Trump, o melhor cenário será, a partir de 2027, ter no Brasil um governo de direita que, porém, tenha aparência de centro. Mais que Tarcísio de Freitas (Republicanos), governador de São Paulo que parece ter desistido da corrida presidencial diante da falta de unidade da direita, Carlos Roberto Massa Júnior (PSD), governador do Paraná mais conhecido pela alcunha de Ratinho Júnior, encarna esse papel.

Domesticamente, sem expectativa de poder com Eduardo, aqueles que compartilham uma agenda golpista — ou seja, a contestação da ordem constitucional de 1988 — tendem a aderir a Ratinho Jr. Sem perfil de liderança nacional, caso eleito será um presidente fraco, refém de oligarquias e outros milicianos de fato que desafiam o poder estatal no plano doméstico enquanto é capturado pelo trumpismo pelo menos até 2028.

Nesse cenário, o STF de Fachin terá dificuldades para se autoconter. A ameaça golpista segue viva, pois não é apenas política, tendo raízes sociológicas profundas, como a ascensão evangélica e do agro, tal como detalho em meu livro Shaping Nations and Markets: Identity Capital, Trade, and the Populist Rage (Routledge, 2024), em que comparo o bolsonarismo com o trumpismo e o nacionalismo hindu de Narendra Modi na Índia.

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A lição que o bolsonarismo nos lega é que a democracia brasileira está longe de estar consolidada, seja devido a forças internas, seja devido a forças externas. Ambas se combinaram em 1964 contra a Constituição de 1946. Já que este texto citou acima Epitácio Pessoa, cabe lembrar que foi em seu governo que o tenentismo — movimento-chave para a derrubada da República Velha em 1930 sob a liderança de Getúlio Vargas — começou a fazer barulho na política nacional.

Diferentemente do bolsonarismo, o tenentismo tinha um caráter progressista em seu tempo. A ascensão bolsonarista completa dez anos em 2028 e, ironicamente, é uma reação não apenas antipetista, mas sobretudo contra o Brasil construído desde 1930 por forças dos mais diversos matizes políticos. Portanto, ainda há tempo, infelizmente, para que a extrema direita se recupere. Nesse cenário, a autocontenção do STF pode ser tomada por covardia pelos que desafiam a ordem constitucional vigente em uma cruzada reacionária de química explosiva para o país tal e qual constituído no último século.

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