Entre 2014 e 2024, 1.242 pessoas trans disputaram eleições no Brasil. O crescimento é real e constante, mas a reeleição é rara — e isso diz muito sobre como a presença política avança, mas ainda emperra na construção de carreiras duradouras.
O paradoxo da visibilidade sem continuidade
Nos últimos dez anos, as campanhas de pessoas trans saíram da invisibilidade e viraram parte do cenário eleitoral brasileiro. Deputadas como Erika Hilton (PSOL-SP) e Duda Salabert (PDT-MG) se tornaram símbolos dessa presença crescente no Congresso Nacional. Isso importa porque quem entra na disputa ajuda a pautar o debate público e reduzir a distância entre instituições e grupos historicamente excluídos.
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Ainda assim, barreiras permanecem: falta de recursos, redes de apoio frágeis e ausência de estatísticas oficiais sobre a população trans — o Censo não mede esse contingente. Para o leitor comum, a pergunta central é simples: esse novo protagonismo se traduziu em presença efetiva nos cargos e continuidade de carreira? Uma pesquisa inédita da UFPR oferece um retrato detalhado do período 2014-2024, com pistas úteis para entender esse fenômeno democrático.
Crescimento constante, mas concentrado na “porta de entrada”
O estudo cruzou dados da Antra (Associação Nacional de Travestis e Transsexuais) com registros oficiais do TSE. O resultado: um banco de dados com 1.242 candidaturas mapeadas, incluindo variáveis de idade, raça/cor, escolaridade, partido e histórico eleitoral.
Os números mostram expansão consistente em todos os ciclos. Nas eleições federais, saltou de 13 candidaturas em 2014 para 81 em 2022. Nas municipais, o crescimento foi ainda mais dramático: de 131 em 2016 para impressionantes 734 em 2024.
Gráfico 1: Evolução das candidaturas trans (2014-2024)
Geograficamente, Sudeste (38,81%) e Nordeste (30,11%) concentram a maioria — em linha com o peso populacional, mas com uma surpresa: o Nordeste aparece acima do esperado quando se compara sua fatia de candidaturas à participação demográfica. No Sul, o Rio Grande do Sul se destaca com participação de candidaturas trans maior que sua fatia populacional na região, concentrando quase metade dos casos sulistas (49,22%).
Quanto aos cargos, há um padrão nítido: a vereança responde por cerca de 87% de todas as tentativas. Em eleições gerais, as disputas se concentram em deputado(a) estadual e federal. Cargos de maior exigência etária, como Senado (35 anos) e governos (30 anos), quase não aparecem — algo compreensível quando se considera a expectativa de vida média estimada para a população trans (35 anos) e as dificuldades de construir carreiras políticas longas.
Perfil: jovens, negras e com baixa continuidade
O perfil das candidatas contrasta com o padrão tradicional da política. A idade média fica em torno dos 40 anos, a maioria (42,27%) possui ensino médio completo, e outros 22,30% têm ensino superior. Um dado marcante é a composição racial: 62,15% se autodeclaram negras (somando pardas e pretas), proporção muito superior à média dos políticos brasileiros (23,3%).
Gráfico 2: Perfil racial das candidatas trans
Além disso, 86,71% se declaram solteiras — índice que pode refletir tanto escolhas pessoais quanto problemas com o registro formal de uniões, ou até o não interesse na formação tradicional de família. Sobre reeleição, o achado é claro: predomina a suplência (60,47%) e poucos retornam ao pleito seguinte com estrutura competitiva. Apenas 5,31% conseguem se eleger efetivamente.
Gráfico 3: Destino das candidaturas trans (2014-2024)
Partidos de esquerda lideram, mas falta continuidade
PT (167 candidaturas) e PSOL (136) emergiram como os principais lançadores, seguidos por PSB (104) e PDT (91). Juntos, esses partidos sinalizam ambientes mais receptivos a essas lideranças, mas a concentração também revela limites: a diversidade partidária ainda é baixa.
Gráfico 4: Top 6 partidos que mais lançam candidaturas trans
O que precisa mudar para ir além da porta de entrada
Primeiro, não basta abrir a porta; é preciso garantir permanência. O salto de candidaturas amplia a visibilidade, mas o funil entre “lançar o nome” e “manter um projeto político” segue estreito. Isso pede ações concretas: formação de quadros, mentorias com parlamentares experientes, estratégias de financiamento compatíveis com campanhas competitivas e critérios claros de distribuição de recursos partidários.
Segundo, é hora de melhorar a informação pública. Para formular políticas sérias, precisamos de dados padronizados. Duas mudanças fariam diferença rápida: (a) padronizar campos de identidade de gênero no TSE, com preenchimento simples e proteção de dados; (b) incorporar de maneira adequada módulos de identidade de gênero em pesquisas oficiais como PNAD, enquanto se discute a viabilidade no Censo. Sem diagnóstico preciso, não há política eficaz.
Da exceção à normalidade democrática
O Brasil viu mais pessoas trans disputando eleições — e isso é uma boa notícia democrática. Mas o retrato de 2014-2024 mostra um avanço ainda concentrado na porta de entrada e frágil na construção de carreira. Se quisermos que a presença vire representação duradoura, precisamos alinhar incentivos partidários, financiamento e informação de qualidade.
A pergunta que fica é direta: o que estamos dispostos a mudar para que trajetórias políticas trans deixem de ser exceção e passem a ser parte da normalidade democrática?