Minas Gerais enfrenta um paradoxo: embora disponha de recursos capazes de transformar realidades sociais, ainda concentra quase 4 milhões de pessoas em situação de pobreza e mais de 1 milhão em extrema pobreza, incidindo de forma desproporcional sobre mulheres, negros e crianças, apesar de uma significativa melhora nos últimos dois anos.
A mais recente Nota Técnica do Observatório das Desigualdades questiona a capacidade do Estado de intervir efetivamente e aponta que, com a correta utilização do Fundo de Erradicação da Miséria (FEM) e uma tributação mais justa sobre heranças (ITCD), seria possível financiar programas de transferência de renda que impactem de forma significativa a miséria e a desigualdade no estado.
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A evolução da pobreza e pobreza extrema em MG
Sob essa ótica, a melhora dos índices de pobreza e extrema pobreza em Minas Gerais entre 2021 e 2024 reforçam a relevância dos programas de transferência de renda como instrumentos essenciais para a transformação de tal realidade.
Nesse período, como demonstra o Gráfico 1, o percentual de pessoas em situação de pobreza caiu de 19,7% para 13,9% — o menor patamar da série histórica — impulsionado pela retomada econômica e pela ampliação das políticas sociais. Já a extrema pobreza, que havia aumentado de forma expressiva em 2021 com o fim abrupto do auxílio emergencial, recuou de quase 9% para 5,1% em 2023, estabilizando-se em 2024.
Gráfico 1: Evolução da pobreza e pobreza extrema em Minas Gerais
Fonte: PNAD Contínua (2012-2024)
Programas de transferência estadual
Diante desse cenário, com base nos microdados da PNAD Contínua, o estudo elaborou simulações de programas estaduais de transferência de renda, apresentadas na Tabela 1, como estratégias para enfrentar a pobreza e extrema pobreza ainda existentes no estado.
Esses programas consideram como parâmetros centrais a vulnerabilidade dos grupos sociais mais afetados — sobretudo mulheres, negros e crianças —, a composição domiciliar, com atenção especial às famílias com maior número de crianças, e a necessidade de equilibrar a focalização do público-alvo e o valor dos benefícios com a sustentabilidade fiscal.
O objetivo é demonstrar que é possível ao Estado intervir de forma significativa, promovendo efetividade social, justiça distributiva e viabilidade orçamentária.
Tabela 1: Programas propostos
Fonte: Observatório das Desigualdades
Impactos dos diferentes programas
Após a redistribuição de renda, observa-se um impacto expressivo das transferências sobre os índices de pobreza e extrema pobreza. A taxa de pobreza cai de 18,11% até 12,64% (a depender do programa a ser utilizado), enquanto a extrema pobreza se reduz de 5,07% até 2,06%. O estudo evidencia, assim, o potencial das transferências no enfrentamento dessa realidade, ressaltando a importância de comparar os efeitos entre os diferentes programas simulados.
A diferença entre o Programa 4 e o Programa 5 (o mais generosos e abrangentes), por exemplo, supera 15% e representa a saída de mais de 80 mil pessoas da condição de extrema pobreza. O Programa 5, que prevê a transferência de R$ 300 por domicílio acrescidos de R$ 150 por criança — em domicílios pobres e extremamente pobres —, apresenta impacto ainda mais significativo, reduzindo a extrema pobreza em cerca de 3 pontos percentuais e retirando mais de 500 mil pessoas dessa situação em Minas Gerais.
Outro ponto importante abordado pela simulação é o impacto da redistribuição sobre o recorte de gênero e raça, o Gráfico 2 evidencia que a extrema pobreza em Minas Gerais é fortemente marcada por desigualdades dessa natureza. No cenário sem programas, mulheres negras (13,61%) e homens negros (11,52%) apresentam taxas muito mais altas que homens brancos (6,80%) e mulheres brancas (7,51%).
As políticas sociais atualmente vigentes reduzem significativamente essas taxas — mais de 7 p.p. para mulheres negras e cerca de 6 p.p. para homens negros —, mas sem alterar a hierarquia de vulnerabilidade.
Nos cenários simulados, a redução da extrema pobreza aumenta conforme o valor e a abrangência dos programas, sendo o Programa 5 o mais efetivo, reduzindo as taxas para cerca de 2% entre mulheres negras e abaixo de 1,5% entre mulheres brancas. Nesse contexto, tais políticas são fundamentais para a diminuição da desigualdade interseccional, mas insuficiente para eliminar completamente a marginalização histórica a qual tais grupos foram submetidos.
Gráfico 2: Desigualdades na taxa de extrema pobreza
Fonte: Observatório das Desigualdades
Sob essa ótica, o combate à pobreza infantil, crucial para o desenvolvimento social, também foi levado em consideração. Em Minas Gerais, 2024, os dados mostram o forte impacto das políticas sociais: sem programas, 811 mil crianças (19,67%) estariam em pobreza extrema, mas os programas atuais já reduzem esse número para 435 mil (11,54%), retirando quase 380 mil da condição.
As simulações indicam que programas adicionais ampliam ainda mais os efeitos, como mostra o Gráfico 3. O Programa 1 corta o contingente quase pela metade em relação ao cenário atual, chegando a 227 mil crianças (5,51%), resultado muito próximo ao Programa 2 (233 mil – 5,42%). Com políticas mais robustas, os índices continuam caindo: 203 mil (4,94%) no Programa 3, 170 mil (4,12%) no Programa 4, até o impacto máximo do Programa 5, que reduziria a pobreza extrema infantil para 129 mil crianças, apenas 3,15% do total.
Gráfico 3: Número de crianças extremamente pobres e taxa de extrema pobreza entre crianças em cada um dos cenários, 2024 (MG)
Fonte: Observatório das Desigualdades
Mas quanto custaria para Minas Gerais?
O estudo indica que os custos anuais dos programas de transferência de renda variam entre R$ 1,4 bilhão e 7,2 bilhões. Apesar de parecerem elevados, esses valores correspondem a de 1,4% a 7,4% das despesas totais de Minas Gerais em 2024, mostrando que, ainda que sejam valores significativos, é plenamente viável destinar uma parcela maior, % do orçamento estadual para tirar milhares de pessoas da pobreza e da extrema pobreza.
Além disso, os programas não se limitam ao combate à miséria: atuam como multiplicadores econômicos, com cada R$ 1 transferido potencialmente gerando R$ 1,61 no PIB estadual, o que poderia resultar em até R$ 11,6 bilhões adicionais à economia e aumentar de forma indireta a arrecadação do estado.
Viabilidade orçamentária
Uma vez estimados os valores necessários para financiar os programas de transferência de renda, surge a questão de onde Minas Gerais poderia obter os recursos para viabilizar esses investimentos? Duas fontes principais se destacam.
A primeira fonte é o Fundo de Erradicação da Miséria (FEM), criado em 2011 com o objetivo de financiar políticas de combate à pobreza e à desigualdade. O fundo é abastecido por um adicional de 2% sobre o ICMS de produtos supérfluos. No entanto, uma parcela significativa dos recursos arrecadados não chega ao FEM ou é desviada para custeio de despesas rotineiras do Estado, sem seguir uma estratégia sistemática de enfrentamento à pobreza.
Estima-se que, em 2024, o fundo deixou de receber cerca de R$ 388 milhões. Logo, argumenta-se que a aplicação plena e direcionada desses recursos poderia financiar as políticas de transferência de renda em Minas Gerais.
A segunda alternativa é a alteração da tributação sobre heranças e doações, por meio do Imposto sobre Transmissão Causa Mortis e Doação (ITCD). Nesse sentido, Minas Gerais atualmente aplica uma alíquota única de 5%, inferior ao limite máximo permitido de 8%, sem critérios de progressividade. Considerando que a maior parte da arrecadação concentra-se nos contribuintes mais ricos, a adoção de alíquotas progressivas permitiria captar recursos adicionais significativos promovendo a justiça tributária.
Três estratégias principais foram avaliadas no que se refere ao aumento da progressividade do ITCD. Sendo elas, a aplicação de alíquotas progressivas dentro dos limites atuais da Constituição, com 5% para os primeiros decis e 8% para os dois últimos. A adoção da alíquota máxima média de 30%, usada em países da OCDE, para todos os decis. E uma estrutura progressiva inspirada no Japão, com alíquotas de 10% a 55% do primeiro ao último decil.
O cenário que respeita a legislação vigente permitiria aumentar a arrecadação em mais de R$ 1 bilhão, enquanto os outros dois cenários indicam potencial de arrecadação ainda maior, superior a R$ 12 bilhões e R$ 21 bilhões como demonstra a Tabela 2.
Tabela 2: Valor arrecadado em cada um dos cenários e a diferença do valor atual, 2024 (MG)
Fonte: Observatório das Desigualdades
Em suma, Minas Gerais dispõe de instrumentos legais e fiscais que, se utilizados de forma estratégica, poderiam ser convertidos em programas de transferência de renda eficazes, demonstrando que limitações financeiras não representam um obstáculo intransponível. Dessa forma, a questão central deixa de ser a viabilidade técnica ou financeira e passa a ser a decisão política necessária para transformar esse potencial em resultados concretos e efetivos para a população.
COSTA, Bruno Lazzarotti Diniz; BRANDÃO, Lucas Augusto de Lima; LACERDA, Miguel Coelho de. Nota Técnica 8 – Minas sem Miséria: Alternativas, Custos e Financiamento de uma Política Estadual de Enfrentamento à Pobreza. Observatório das Desigualdades Belo Horizonte: Fundação João Pinheiro, ago. 2025. Disponível em: https://observatoriodesigualdades.fjp.mg.gov.br/wp-content/uploads/2025/08/NOTA-TECNICA-8.pdf Acesso em: 01 set. 2025