O sistema de justiça brasileiro vive em constante transformação desde 1988. As funções essenciais à Justiça – Ministério Público (MP), Defensoria Pública (DP) e advocacia pública – não permaneceram inalteradas após a promulgação da Constituição, mas seguiram trajetórias de mudanças formais e informais, ora por reformas legislativas, ora por redirecionamentos de prioridades institucionais.
Essas transformações refletem não apenas adaptações às demandas sociais, mas também estratégias de fortalecimento e legitimação das próprias instituições no complexo jogo de competições e cooperações que marca o funcionamento do sistema de justiça nacional (LAMENHA; LIMA, 2021).
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No caso específico da advocacia pública, essa trajetória tem sido mais heterogênea que a do Ministério Público ou da Defensoria Pública. Enquanto estas últimas consolidaram agendas corporativas relativamente coesas – o MP transitando da tutela coletiva para o combate à corrupção, a DP expandindo progressivamente suas atribuições para direitos humanos e tutela coletiva –, a advocacia pública ainda busca maior unidade normativa e organizacional em meio à sua complexa composição federativa.
A edição da Portaria Normativa 194, de 10 de setembro de 2025, pela Advocacia-Geral da União (AGU), insere-se nesse contexto de evolução institucional. A normativa representa um marco na racionalização e sistematização dos processos estruturais no âmbito federal, consolidando e organizando uma atuação que já vinha sendo desenvolvida de forma fragmentada pela advocacia pública.
Mas vai além: pela primeira vez, estabelece fluxos internos claros, prazos objetivos e responsabilidades específicas entre consultoria e contencioso, reconhecendo que a defesa judicial coordenada da União e de suas entidades não pode mais limitar-se à lógica adversarial tradicional, mas deve assumir contornos propositivos, cooperativos e dialógicos.
O mérito da portaria é triplo. Primeiro, sistematiza experiências dispersas em um marco regulatório coeso. Segundo, organiza a atuação interna da AGU em fases metodicamente estruturadas (requisição de subsídios, elaboração de plano estrutural, monitoramento), valorizando a articulação entre consultoria e contencioso através do Sistema Sapiens.
Terceiro, e mais importante, reposiciona a União – frequentemente vista apenas como “ré resistente” em ações civis públicas – como participante ativa e propositiva na construção de soluções estruturais. Essa mudança dialoga com o que a literatura tem apontado há anos: sem a participação engajada do ente público demandado, não há processo estrutural efetivo.
Na tradição adversarial, a defesa do ente público tende a assumir um papel meramente defensivo, muitas vezes restrito a preliminares processuais ou à tentativa de afastar a responsabilidade estatal. Mas, conforme já argumentei em diversos trabalhos acadêmicos sobre processos estruturais (LIMA; FRANÇA, 2021a; LIMA; FRANÇA, 2021b), litígios que envolvem políticas públicas e disfunções administrativas são, por natureza, estruturais. Exigem diagnósticos institucionais, compromissos de reorganização e acompanhamento contínuo. A defesa estatal, nesse cenário, deve ser parte da solução, não apenas da resistência.
Além dos casos frequentemente documentados na literatura, minha própria vivência profissional, ao longo de 22 anos de AGU, mostra que o diálogo entre instituições é crucial para a efetividade dos processos estruturais. Litígios estruturais envolvendo questões ambientais complexas (como Monte dos Guararapes ou Muribeca, em Pernambuco), políticas de saúde (como a regulamentação do uso medicinal da cannabis) e educacionais (Fundef, Fundeb), demonstram que soluções duradouras emergem apenas quando a Administração participa ativamente da construção de alternativas viáveis. A resistência puramente defensiva gera, no máximo, vitórias processuais temporárias, mas raramente resolve os problemas de fundo que motivaram a judicialização.
Essa perspectiva encontra respaldo na literatura internacional. Owen Fiss (1979), ao analisar as structural injunctions nos Estados Unidos, já destacava que ordens estruturais funcionam como instrumentos de reforma institucional, cujo êxito depende da colaboração dos atores envolvidos.
A experiência brasileira tem confirmado essa premissa: processos estruturais efetivos não se resumem à responsabilização, mas se destinam a transformar realidades complexas. A legitimação dessas decisões depende não apenas do reconhecimento judicial, mas também da capacidade institucional do ente público de participar ativamente de sua implementação. A Portaria da AGU, ao prever a elaboração de planos estruturais e mecanismos de monitoramento, insere a advocacia pública exatamente nessa racionalidade.
Neste sentido, a defesa das políticas públicas, quando ancorada em bases democráticas e técnicas, é expressão de legitimidade constitucional. O Estado não atua apenas como litigante, mas como formulador de políticas que traduzem escolhas coletivas realizadas no espaço político e que devem ser protegidas de ingerências arbitrárias ou inviáveis.
Nessa perspectiva, a advocacia pública exerce função essencial: garantir que políticas concebidas a partir de critérios técnicos, respaldo orçamentário e deliberação democrática possam ser implementadas sem o risco de captura por interesses conjunturais ou soluções judiciais descoladas da realidade administrativa. Trata-se de assegurar que o sistema de justiça atue como espaço de aprimoramento institucional, e não de substituição indevida das escolhas legítimas da sociedade.
Reconhecer, entretanto, a legitimidade das políticas públicas não significa negar suas fragilidades. O caso brasileiro tem demonstrado que muitas medidas, ainda que bem desenhadas, encontram barreiras concretas para sua plena implementação – sejam limites orçamentários, carências estruturais ou resistências políticas locais.
É nesse ponto que o processo estrutural revela sua importância: ao invés de impor soluções imediatistas, cria espaços para que tais dificuldades sejam explicitadas, monitoradas e superadas progressivamente. A legitimidade democrática das políticas públicas e a transparência quanto aos obstáculos de sua execução não são incompatíveis; ao contrário, constituem dimensões complementares de um mesmo compromisso republicano com a efetividade dos direitos fundamentais.
A Portaria 194, portanto, institucionaliza o que a prática já vinha demonstrando. Ao invés de limitar-se à contestação fragmentada, a AGU agora assume formalmente que sua atuação deve contribuir de forma coordenada para o desenho de soluções viáveis. Isso significa trazer sistematicamente para o processo estrutural informações técnicas sobre orçamento, gestão, viabilidade administrativa e cronogramas de execução, permitindo que planos sejam factíveis e sustentáveis. O que era experiência pontual torna-se metodologia institucional.
Não se pode ignorar, contudo, os desafios dessa mudança. Há uma cultura de litigiosidade defensiva a ser superada, além da necessidade de recursos técnicos especializados e da coordenação federativa em litígios que envolvem estados e municípios. Outro ponto crítico é a compatibilização entre atuação estrutural e responsabilização: como articular planos dialógicos com a aplicação da Lei de Improbidade Administrativa (inclusive após as reformas de 2021), sem abrir espaço para percepções de leniência ou impunidade? (LIMA, 2025)
A Portaria 194 surge em um contexto de intensa competição no sistema de justiça brasileiro. Ministério Público, Defensoria Pública e Tribunal de Contas disputam, há décadas, a primazia na tutela coletiva e no controle de políticas públicas. A AGU, tradicionalmente vista como “defensora passiva” do Estado, agora se posiciona como articuladora proativa de soluções estruturais. Essa mudança de paradigma não é apenas processual, mas sim política. Representa o reconhecimento de que a advocacia pública deve participar ativamente da construção de políticas públicas efetivas, não apenas reagir às suas contestações judiciais.
Nesse cenário competitivo, a especialização da AGU em processos estruturais pode reequilibrar as forças no sistema de justiça. Enquanto outros órgãos focam na identificação de problemas e responsabilização, a advocacia pública assume o papel de viabilizar soluções. É uma divisão racional do trabalho que reconhece as competências institucionais específicas: quem conhece as engrenagens da máquina estatal está melhor posicionado para propor como reformá-la. A portaria, portanto, não apenas regula procedimentos – redefine o lugar da AGU na governança das políticas públicas brasileiras.
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Ainda assim, o potencial de transformação é inegável. Como venho discutindo em pesquisas sobre o funcionamento das instituições do sistema de justiça brasileiro, experiência refletida a partir de mais de duas décadas atuando em ações civis públicas, a efetividade judicial passa pela construção de arranjos institucionais que vão além da sentença condenatória. A AGU, como órgão de Estado, tem a oportunidade de liderar essa mudança cultural, internalizando o processo estrutural como gramática de atuação institucional.
Se bem implementada, a Portaria 194/2025 pode reposicionar a advocacia pública como protagonista do constitucionalismo transformador brasileiro. Não apenas como defesa do ente público, mas como articuladora de soluções para litígios que comprometem a realização de direitos fundamentais. Ao reconhecer a centralidade da participação ativa do Estado nos processos estruturais, a portaria inaugura uma etapa em que a defesa estatal deixa de ser obstáculo e passa a ser condição de possibilidade para a transformação institucional.
BRASIL. Advocacia-Geral da União. Portaria Normativa AGU nº 194, de 10 de setembro de 2025. Disciplina atividades e fluxos entre os órgãos de contencioso e de consultoria da AGU relativos a conflitos estruturais A regulamentação dos processos estruturais no âmbito da AGU. Diário Oficial da União: seção 1, Brasília, DF, 10 set. 2025. Disponível em: https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/portaria-normativa-agu-n-194-de-10-de-setembro-de-2025-654667545. Acesso em: 22 set. 2025.
FISS, Owen M. The Supreme Court, 1978 Term. Foreword: the forms of justice. Harvard Law Review, Cambridge, vol. 93, n. 1, 1979, p. 1-58.
LIMA, Flávia Danielle Santiago. Prefácio. In: CREMONEZI, Ana Cristina. Processo estrutural e lei de improbidade administrativa: a perspectiva dialógica de processo como complemento ou contraponto ao direito administrativo sancionador. Londrina: Editora Thoth, 2025.
LAMENHA, Bruno; LIMA, Flávia Danielle Santiago. Quem defenderá a sociedade? Trajetórias e competição institucional em torno da tutela coletiva entre ministério público e defensoria no pós-1988. Revista Espaço Jurídico, v. 22, p. 73-104, 2021.
LIMA, Flávia Danielle Santiago; FRANÇA, E. P. C. Processo coletivo, estrutural e dialógico: o papel do juiz-articulador na interação entre os partícipes na ação civil pública. A&C. Revista de Direito Administrativo & Constitucional, v. 21, p. 169-198, 2021a.
LIMA, Flávia Danielle Santiago; FRANÇA, E. P. C. Repensando o papel da jurisdição nos litígios estruturais de interesse público: do ativismo antidialógico à decisão compartilhada. Revista Eletrônica de Direito Processual, v. 22, p. 350-378, 2021b.
LIMA, Flávia Danielle Santiago; LINS, B. J. R. L. Mudança e pluralidade institucional no(s) Ministério(s) Público(s) brasileiro(s): da tutela coletiva ao combate à corrupção? Teoria Jurídica Contemporânea, v. 7, p. 1-36, 2023.