A Convenção sobre os Aspectos Civis do Sequestro Internacional de Crianças, concluída na cidade da Haia, em 25 de outubro de 1980, foi discutida em um contexto muito diferente do atual, quase 45 anos depois da sua elaboração.
Naquele momento, a preocupação se dava pela situação na qual um dos genitores levava os filhos para um país diferente do qual residiam, visando à obtenção de uma decisão judicial mais favorável em relação à guarda e à manutenção do convívio. Diante dessas situações, a Convenção estabeleceu procedimentos de cooperação entre os Estados para garantir o retorno imediato das crianças ao Estado de origem.
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Atualmente, entretanto, o cenário é composto por mães migrantes que vivenciam contextos de violências, incluindo doméstica, no exterior e regressam para obter suporte da sua rede de apoio, sem que essa hipótese conste explicitamente no tratado como uma exceção capaz de afastar a incidência da regra do retorno imediato. Tais casos refletem a necessidade de compreensão e interpretação da Convenção à luz das peculiaridades decorrentes de fatores históricos e socioculturais no contexto transnacional.
Por essa razão, considerando o contexto brasileiro, a adaptação interpretativa aos aspectos constitucionais, à luz dos direitos fundamentais das crianças e adolescentes, sua proteção integral, melhor interesse e prioridade absoluta dos seus interesses, conjugada aos fatores fáticos da própria aplicação da norma, tornam-se fundamentais para garantir os objetivos do próprio tratado, que é a garantia de direitos de crianças e adolescentes. Nesse sentido, em 2009, foram protocoladas as Ações Diretas de Inconstitucionalidade 4245 pelo Democratas (DEM), e em 2024, a ADI 7686 pelo Partido Socialismo e Liberdade (PSOL).
Julgadas recentemente, a decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal (STF) nas referidas ADIs foi crucial para consolidar a doutrina da proteção integral de crianças e adolescentes nos casos em questão, especialmente no intuito de considerar as alegações de violência doméstica.
A deliberação concentrou-se, principalmente, no art. 13 (1)(b), o qual prevê a exceção à regra do retorno imediato de crianças e adolescentes quando implicar em grave risco de dano físico ou psicológico ou puder submetê-las, de qualquer outra forma, a uma situação intolerável.
Trata-se de uma decisão relevante para a agenda dos direitos de crianças, adolescentes e mulheres na medida em que o STF determina que a Convenção da Haia deve ser interpretada conforme a Constituição, de modo que o retorno imediato da criança não se aplica de forma absoluta. Tal regra deve, assim, ser afastada quando houver risco grave concreto, direto ou indireto, à integridade física ou psicológica da criança, especialmente em casos de violência doméstica contra a mãe, com base no princípio do melhor interesse da criança e sob a perspectiva de gênero.
A modulação dos efeitos, os meios de prova e a competência da justiça federal para julgar o caso também foram debatidos, principalmente considerando os aspectos administrativos da medida, que envolve a especialização dos magistrados para tratar do tema e a necessidade de suporte aos órgãos do Ministério das Relações Exteriores fora do Brasil.
Na decisão, ainda, o STF destacou os aspectos probatórios necessários para comprovar a violência doméstica, principalmente se forem consideradas as peculiaridades e dificuldades de demonstrar a materialidade, especialmente considerando o contexto de mães que residem no exterior, as quais, em sua maioria, estão inseridas em um contexto de vulnerabilidade socioeconômica, sem redes de apoio – inclusive jurídica –, colocando em risco não apenas a sua integridade, mas também a de seus filhos e filhas.
O Instituto Alana e a Revibra Europa, organizações que atuaram como amici curiae nas ADIs, contribuíram para as discussões a partir da regra e princípio da prioridade absoluta dos direitos de crianças e adolescentes e da garantia dos direitos das mulheres. Os dados indicam que os casos de violência doméstica contra mães no exterior representam a maioria na aplicação da Convenção da Haia, e esse cenário impacta também a vida de crianças e adolescentes. Em seu voto, o ministro Edson Fachin mencionou um dado apresentado pelas organizações, segundo o qual aproximadamente 88,1% das mulheres atendidas pela Revibra e envolvidas em processos de subtração internacional são vítimas de violência doméstica.
A decisão pela aplicação da Convenção da Haia a partir do cenário atual é um avanço a nível nacional com possível impacto a nível internacional, na medida em que reconhece que a aplicação descontextualizada da Convenção poderia estar, na verdade, violando direitos de crianças, adolescentes e mulheres, em vez de garanti-los. Considerar a violência doméstica contra mulheres como uma exceção à regra do retorno imediato de crianças e adolescentes reconhece a prioridade absoluta de direitos e o melhor interesse desse público e a sua indissociabilidade com os direitos de mulheres.
A condução acertada do STF em considerar o contexto fático no processo decisório, compreendendo a necessidade de políticas públicas que envolvam a atuação de outros Poderes, reforça o Brasil como precursor na garantia de direitos de crianças, adolescentes e mulheres, bem como fortalece a doutrina da proteção integral e aponta para a garantia da prioridade absoluta de direitos de crianças e adolescentes, nos termos do artigo 227 da Constituição Federal.