A reforma tributária aprovada pela Emenda Constitucional 132/2023 representa uma mudança estrutural no sistema de tributos sobre o consumo no Brasil. Com ela, surgem o Imposto sobre Bens e Serviços (IBS) e a Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS), que formam um modelo de IVA dual e incorporam princípios até então pouco debatidos de forma explícita no texto constitucional: a neutralidade fiscal e a justiça tributária.
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A neutralidade fiscal (art. 156-A, §1º da Constituição Federal), segundo Paulo Caliendo[1], busca evitar que os tributos interfiram nas decisões dos agentes econômicos, garantindo um ambiente de negócios mais eficiente e racional. Em outras palavras, a tributação não deveria influenciar onde e como produzir, nem em que etapa da cadeia econômica concentrar operações. O imposto, nesse modelo, é neutro como um observador invisível, que incide igualmente em todas as fases do processo produtivo.
Já a justiça tributária, também expressamente incluída pela EC 132/2023 (art. 145, §3º da Constituição Federal), introduz uma lógica distinta. Daniela Oliveira[2] destaca que esse princípio ainda está em disputa, tanto no campo político quanto no doutrinário, mas já nasce com a força de exigir que o sistema tributário brasileiro incorpore a equidade como parâmetro. A Constituição foi além ao determinar, no §4º do mesmo artigo, que a legislação busque reduzir os efeitos regressivos da tributação — ou seja, aliviar o peso desproporcional dos tributos sobre os mais pobres.
Essa busca por um sistema tributário justo, contudo, é incompleta se não abordar as interseções com as desigualdades de gênero e de raça. A suposta neutralidade fiscal, que ignora as particularidades de consumo e as diferentes posições de poder dentro da economia, pode perpetuar injustiças históricas.
Por exemplo, a tributação de produtos de higiene feminina, ou a sobrecarga tributária em serviços essenciais para a saúde e o cuidado de crianças e idosos — que recai desproporcionalmente sobre as mulheres, sobretudo as negras — demonstra como um sistema “neutro” pode ser profundamente injusto[3].
O debate sobre a neutralidade, portanto, precisa ser expandido para questionar se a igualdade formal de tratamento tributário realmente contribui para a igualdade substantiva de gênero e de raça, ou se, pelo contrário, reforça o ciclo de desigualdades sociais.
A coexistência desses princípios é, ao mesmo tempo, promissora e desafiadora. Em um país marcado por desigualdades de renda, raça e gênero, a tentativa de equilibrar neutralidade e justiça tributária suscita um dilema: seriam esses princípios compatíveis ou antagônicos?
A neutralidade fiscal, tal como hoje vem sendo aplicada, pode acabar reforçando desigualdades em vez de reduzi-las. Maria Angélica Santos[4] observa que, ao aplicar o mesmo peso tributário em todas as etapas do processo produtivo, ignora-se o fato de que os diferentes atores econômicos não partem do mesmo ponto de largada. Nesse cenário, a neutralidade corre o risco de se tornar injusta na prática.
A justiça tributária, ao contrário, exige olhar para as diferenças e tratá-las de forma diferenciada. Drucilla Cornell[5], ao refletir sobre justiça como equidade, lembra que dar tratamento igual a todos não garante igualdade substantiva — especialmente em sociedades profundamente desiguais. Em outras palavras, para ser justa, a tributação precisa ser desigual em alguma medida.
Essas duas abordagens, quando aplicadas no mesmo sistema, revelam tensões que não podem ser ignoradas. A neutralidade, se entendida apenas como ideal técnico de eficiência econômica, pode se opor ao ideal constitucional de justiça social. Mas isso não significa que a conciliação seja impossível.
Um caminho viável é reformular o conceito de neutralidade, aproximando-o de uma neutralidade substancial, como sugere Eliane Conceição[6]. Isso significaria não tratá-la apenas como ausência de distorções econômicas, mas como um instrumento que também leve em conta a necessidade de reduzir desigualdades. Um exemplo concreto já previsto na reforma é a devolução de tributos para famílias de baixa renda, mecanismo que traduz essa neutralidade socialmente orientada.
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Outro ponto está no papel do legislador infraconstitucional. A definição de alíquotas, regimes específicos e critérios de partilha federativa poderá mitigar (ou reforçar) os impactos regressivos. A experiência internacional mostra que é possível compatibilizar eficiência com redistribuição, desde que a neutralidade seja calibrada por políticas compensatórias. Países como Canadá, África do Sul e alguns da União Europeia oferecem modelos interessantes de ajuste.
No fim, é preciso reconhecer que o sistema tributário não é apenas arrecadatório: ele é também um espelho das escolhas políticas e dos valores constitucionais de uma sociedade. Neutralidade e justiça não precisam ser inimigas, desde que se aceite reinterpretar a primeira à luz da segunda.
Neutralidade fiscal, sim — mas desde que seja justa.
CALIENDO, Paulo. Curso de direito tributário. 5. ed. Porto Alegre: Editora Fundação Fênix, 2023. Disponível em: https://www.fundarfenix.com.br/ . Acesso em 07 out. 2024.
CONCEIÇÃO, Eliane Barbosa da. Tributação Justa, Reparação Histórica: uma discussão necessária. Belo Horizonte: Letramento, 2023.
CORNELL, Drucilla. The Imaginary Domain: Abortion, Pronography and Sexual Harrassment. Nova Iorque: Routledge, 1995.
DANTAS, Isabella. Pink Tax: Caminhos para o enfrentamento da desigualdade de gênero. 2023. Dissertação (Mestrado) – Programa de Pós Graduação Stricto Sensu em Direito da Universidade Católica de Brasília. Disponível em: https://bdtd.ucb.br:8443/jspui/bitstream/tede/3249/2/IsabellaDantasDissertacao2023.pdf
OLIVEIRA, Daniela Olimpio. As paredes da estrutura: atravessamentos tributários. Belo Horizonte: Letramento, 2023.
SANTOS, Maria Angélica. Tributação e Raça: fabulações tributárias – uma imersão na teoria racial crítica do direito tributário. Belo Horizonte: Casa do Direito, 2023.
[1] CALIENDO, Paulo. Curso de direito tributário. 5. ed. Porto Alegre: Editora Fundação Fênix, 2023. Disponível em: https://www.fundarfenix.com.br/ . Acesso em 07 out. 2024.
[2] OLIVEIRA, Daniela Olimpio. As paredes da estrutura: atravessamentos tributários. Belo Horizonte: Letramento, 2023.
[3] Vide DANTAS, Isabella. Pink Tax: Caminhos para o enfrentamento da desigualdade de gênero. 2023. Dissertação (Mestrado) – Programa de Pós Graduação Stricto Sensu em Direito da Universidade Católica de Brasília. Disponível em: https://bdtd.ucb.br:8443/jspui/bitstream/tede/3249/2/IsabellaDantasDissertacao2023.pdf
[4] SANTOS, Maria Angélica. Tributação e Raça: fabulações tributárias – uma imersão na teoria racial crítica do direito tributário. Belo Horizonte: Casa do Direito, 2023.
[5] CORNELL, Drucilla. The Imaginary Domain: Abortion, Pronography and Sexual Harrassment. Nova Iorque: Routledge, 1995.
[6] CONCEIÇÃO, Eliane Barbosa da. Tributação Justa, Reparação Histórica: uma discussão necessária. Belo Horizonte: Letramento, 2023.