A sanção do chamado ECA Digital (Lei 15.211/2025) foi recebida como uma conquista para a proteção de crianças e adolescentes no ambiente online. A lei impõe obrigações novas a diversas empresas que operam no ambiente digital.
Entre elas estão mecanismos de verificação de idade, contas de crianças e adolescentes vinculadas a responsáveis legais, filtros contra conteúdos impróprios, limites para publicidade direcionada e restrições à monetização em situações de risco, como quando crianças são retratadas em contexto de erotização ou adultização precoce. O foco é evidente: garantir que os mais jovens não sejam expostos a conteúdos que comprometam sua dignidade ou desenvolvimento.
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Mas a lei se ocupa apenas do que crianças e adolescentes consomem. Nada diz sobre o que eles produzem. E é justamente aí que floresce um debate delicado, ainda sem respostas claras, mas já presente em decisões judiciais e em alguns debates acadêmicos[1]: o dos influenciadores mirins, crianças que produzem vídeos regularmente, atraem milhões de seguidores e, muitas vezes, recebem produtos, patrocínios e remuneração por suas postagens. O que parece espontâneo vai ganhando contornos de profissionalização, e, aos olhos da Justiça do Trabalho, passa a ser tratado como trabalho infantil.
Para compreender o impasse, é preciso revisitar a moldura legal existente. A Constituição da República proíbe qualquer trabalho a menores de 16 anos, salvo na condição de aprendiz a partir dos 14 (artigo 7º, XXXIII; art. 227, §3º, I). Essa é a regra. A exceção aparece no campo artístico: o Brasil é signatário da Convenção 138 da Organização Internacional do Trabalho, que admite o trabalho infantil artístico desde que autorizado caso a caso, mediante licença judicial.
Essa exceção foi internalizada no artigo 149 do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), que determina que a participação de crianças e adolescentes em espetáculos públicos, gravações ou ensaios só pode ocorrer com alvará judicial (cuja expedição é de competência da Justiça comum, nos termos da ADI 5.326).
Esse modelo foi originalmente concebido para a televisão, o teatro e a publicidade tradicional. Na prática, o requerimento pode ser feito pela produtora/emissora com anuência dos responsáveis, ou pelos próprios responsáveis, mas o que importa é o controle judicial prévio sobre tempo, tarefa e condições. Impõe-se, então, a pergunta: poderia a mesma lógica ser aplicada para o mundo digital?
Um primeiro ponto que vale atenção – e que inclusive em boa medida já encontra respaldo no ECA Digital – é a existência de múltiplos serviços no universo digital. Alguns desses serviços, inclusive, possuem curadoria de conteúdo de forma semelhante ao que existia antes do paradigma digital se consolidar. Nestes casos, parece que o desafio é menor e as regras que já estavam consolidadas na legislação provavelmente seriam adequadas e suficientes.
Os tribunais trabalhistas têm começado a enfrentar essa pergunta, no entanto, diante de recentes ações civis públicas ajuizadas pelo Ministério Público do Trabalho em face de uma série de plataformas digitais.
A título de exemplo, em agosto, o juízo da 7ª Vara do Trabalho de São Paulo proferiu uma liminar que obriga o Facebook e o Instagram a não admitirem ou tolerarem a exploração de trabalho infantil artístico nas respectivas plataformas sem prévia autorização judicial, sob pena de multa de R$ 50 mil por criança ou adolescente em situação irregular.
Em outro caso, de junho, o Tribunal Regional do Trabalho da 2ª Região manteve a condenação da ByteDance Brasil, responsável pelo TikTok, determinando que a empresa impeça a publicação de vídeos com trabalho infantil artístico na plataforma sem o alvará judicial autorizando a atividade; e que pague R$ 100 mil em indenização por dano moral coletivo.
Em ambos os casos, portanto, a tutela inibitória pretendida pelo MPT e a linha seguida pelas decisões são no sentido de que as plataformas têm um dever legal de exigir a apresentação da autorização para a difusão do conteúdo (e não necessariamente que integrem o polo ativo em um procedimento de jurisdição voluntária para o pedido de alvará).
Nesse contexto, o paralelo com a TV parece lógico, mas encontra limites óbvios. No universo da televisão, há contratos formais e relações centralizadas. O juiz analisa um conjunto delimitado de condições de trabalho e decide. Já no ambiente digital, a lógica é outra: milhões de uploads diários, arranjos publicitários informais, remuneração difusa e uma espontaneidade que não cabe em formulários. Como esperar que plataformas rastreiem alvarás individuais para cada perfil infantil? Não há padronização documental, nem tecnologia consolidada que torne isso viável. O risco é que, na tentativa de cumprir a lei, as empresas optem por bloqueios automáticos, produzindo exclusão indiscriminada de conteúdos legítimos.
O ECA Digital não resolve esse impasse, mas traz indícios de caminhos possíveis. A exigência de que contas de menores de 16 anos estejam vinculadas a responsáveis pode ser vista como embrião de uma governança para influenciadores mirins. A proibição de monetização em casos de adultização sinaliza preocupação com a exploração precoce da imagem infantil.
A obrigação de relatórios de avaliação de riscos sugere que plataformas devem refletir não apenas sobre o que crianças consomem, mas também sobre o fato de elas serem produtoras de conteúdo. Ainda assim, faltam parâmetros claros para distinguir lazer de trabalho, e não há qualquer procedimento que compatibilize a realidade descentralizada da internet com a exigência de alvarás judiciais.
Nesse vazio, proliferam dúvidas: o que caracteriza trabalho artístico no ambiente online, e até que ponto uma concepção ampla pode acabar criminalizando a criatividade infantil ou inviabilizando conteúdos sem intenção comercial? Quem deve responder em caso de exploração – os pais que administram os perfis, as agências que intermediam contratos, os anunciantes que financiam a exposição ou a própria plataforma que hospeda os conteúdos? E como exigir das empresas mecanismos de verificação que nem o próprio ordenamento jurídico definiu?
Para a juíza que analisou o caso do TikTok em primeira instância, as respostas são inequívocas. Na decisão, ela afirmou que crianças que protagonizam conteúdos digitais em formatos diversos – cantando, cozinhando, participando de desafios, encenando novelinhas ou desembrulhando presentes – desempenham atividades artísticas comparáveis às de atores e cantores mirins em teatro, cinema ou televisão.
Quando há habitualidade, monetização e orientação de performance, não há dúvida de que se trata de trabalho. A monetização, aliás, não precisa ser em dinheiro: patrocínios, recebimento de produtos ou serviços gratuitos também caracterizam vantagem econômica. Nesse quadro, cabe às plataformas fiscalizar o cumprimento da lei.
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No fim, é certo que esta é apenas uma interpretação possível. Outros juízes podem avaliar de forma distinta o mesmo conjunto de sinais, e não há hoje parâmetros legais claros que sustentem essa tese, trazendo insegurança jurídica.
Não por outra razão, já surgiram projetos de lei no Congresso Nacional voltados a endereçar os impasses (ou ao menos alguns deles). O PL 3444/2023, por exemplo, busca de alguma forma regulamentar os serviços de influenciadores, e fala explicitamente em alterar o ECA a fim de proteger contra o trabalho infantil neste contexto.
Em síntese, o cenário revela um descompasso entre normas concebidas para a televisão e ambientes analógicos e práticas típicas do ambiente digital. O ECA Digital reforçou a proteção do consumo, mas deixou ao menos parte da produção em terreno cinzento. Entre proteger crianças contra abusos e não transformar plataformas em censores improvisados de cada vídeo postado, seguimos sem uma resposta clara – e talvez seja justamente nesse espaço de incerteza que o debate precise amadurecer.
[1] Vide, por exemplo, o debate proposto por Pedro Pertence, no livro A nova TV.