O vácuo legislativo que trava o setor de gás no Brasil

O Brasil atravessa um momento crucial na definição das regras que vão orientar o setor de gás natural. A Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP) discute atualmente uma resolução que busca estabelecer critérios técnicos para diferenciar gasodutos de transporte dos de distribuição. Trata-se de uma discussão aparentemente técnica, mas que na prática tem impacto direto na organização do setor, na segurança jurídica dos investimentos e no futuro da matriz energética nacional.

O gás natural vem se consolidando como um combustível estratégico de transição. Emite menos poluentes do que carvão e derivados de petróleo, além de oferecer flexibilidade para atender picos de demanda e complementar fontes renováveis, como a solar e a eólica. Seu papel é cada vez mais relevante para a estabilidade do sistema elétrico brasileiro, sobretudo em um cenário de mudanças climáticas e pressões internacionais por descarbonização.

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A proposta da ANP pretende harmonizar regras e trazer clareza regulatória, mas não esgota o problema. A consulta pública já recebeu centenas de contribuições de empresas, governos estaduais e especialistas, sinalizando a complexidade do tema. O objetivo declarado é adequar a regulação à chamada Lei do Gás (Lei 14.134/2021), que reforçou a competência da União para tratar do transporte de gás natural. No entanto, a discussão evidencia uma lacuna maior: a ausência de regulamentação do artigo 25, §2º da Constituição Federal.

Esse dispositivo constitucional, alterado pela Emenda 5 de 1995, é claro ao determinar que cabe aos estados explorar, diretamente ou mediante concessão, os serviços locais de gás canalizado. O contexto da época ajuda a entender a mudança: no início dos anos 1990, havia forte pressão para descentralizar atividades estatais e fortalecer as empresas estaduais de distribuição de gás, muitas delas recém-criadas. A emenda buscou garantir autonomia aos Estados, mas acabou deixando em aberto a definição precisa de competências, gerando dúvidas que persistem até hoje.

O resumo da ópera é o seguinte: a emenda constitucional realizada em 1995 contribuiu para deixar a questão mais confusa. Com a inclusão do trecho “na forma da lei” no artigo 25, §2º da Constituição, a emenda delegava a regulação a alguma legislação complementar que ainda não existia – ou seja, precisaria ser criada a partir de então. Mais do que isso: por se tratar de tema constitucional, essa nova legislação precisaria, necessariamente, ser uma lei federal.

Mas os anos foram passando, e o Congresso seguiu sem criar a tal legislação para regular a emenda constitucional. Como resultado, na tentativa de preencher o vácuo legislativo, governos estaduais criaram suas próprias leis e agências reguladoras estabeleceram normas próprias para o assunto. Tudo paliativo, porque sem a lei federal – que seria a única e definitiva solução indiscutível –, a insegurança jurídica persiste, com o constante questionamento judicial das normas expedidas por agências e das leis criadas pelos estados. E lá se vão exatamente três décadas.

A falta de regulamentação gera insegurança em várias frentes. Há pouca produção acadêmica sobre o assunto e raríssimas decisões judiciais abordando o dispositivo constitucional. Essa ausência de referências alimenta interpretações divergentes. De um lado, há quem sustente que a Constituição garantiu aos estados competência exclusiva para a distribuição de gás. De outro, cresce a visão de que essa regra precisa ser delimitada por lei complementar para evitar choques com a União e com a regulação setorial.

Na prática, isso significa que grandes projetos de infraestrutura, que exigem bilhões de reais e décadas de operação, ficam expostos a questionamentos jurídicos. Empresas transportadoras temem investir em novos gasodutos sem garantia de que não serão enquadrados como distribuição estadual. Governos estaduais, por sua vez, receiam perder parte de sua autonomia e de suas receitas. Essa tensão abre espaço para disputas judiciais que podem travar contratos, encarecer projetos e atrasar obras essenciais para a expansão da malha de gás no país.

O ponto central é que não basta uma resolução administrativa da ANP para pacificar o setor. A verdadeira solução depende do Congresso Nacional. Somente a regulamentação do artigo 25, §2º da Constituição poderá definir, de forma inequívoca, os limites de atuação da União e dos estados. É essa lei complementar que dará segurança jurídica aos agentes do mercado e permitirá alinhar o Brasil às melhores práticas internacionais de governança no setor de gás.

Vale lembrar que o debate não é meramente técnico. Ele envolve interesses econômicos relevantes: desde empresas produtoras e transportadoras até distribuidoras estaduais e consumidores industriais. O gás natural pode reduzir custos de produção, substituir combustíveis mais poluentes e ampliar a competitividade de setores intensivos em energia, como siderurgia, química e fertilizantes. Mas para que esses benefícios se concretizem, o marco regulatório precisa ser estável e previsível. Hoje, investidores avaliam com cautela a falta de clareza normativa e muitos adiam decisões por receio de insegurança jurídica.

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O Brasil vive, portanto, uma contradição: de um lado, reconhece a importância estratégica do gás natural; de outro, mantém há décadas um dispositivo constitucional sem regulamentação, criando um impasse permanente.

Essa lacuna não apenas dificulta a atração de novos investimentos, como também ameaça levar o setor a disputas judiciais intermináveis, exatamente no momento que o país mais precisa de segurança energética e clareza regulatória. Outros países que ampliaram rapidamente o uso do gás natural, como Estados Unidos e Reino Unido, só conseguiram fazê-lo a partir de marcos regulatórios estáveis e duradouros.

O debate em curso mostra que a hora de enfrentar esse vazio constitucional é agora. A regulamentação do artigo 25, §2º da Constituição é condição indispensável para harmonizar competências, fortalecer a segurança jurídica e garantir a expansão sustentável do mercado de gás natural. Trata-se de um passo decisivo não apenas para o setor, mas para o futuro da política energética brasileira. Sem essa definição, o país seguirá convivendo com incertezas e perdendo oportunidades estratégicas em um mercado cada vez mais competitivo.

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