Duas decisões judiciais favoráveis a distribuidoras de combustíveis foram emitidas na última semana pela 17ª Vara Cível da Justiça Federal do Distrito Federal. Os casos correm em sigilo de Justiça e adicionam mais uma camada à disputa bilionária que opõe grandes e médias distribuidoras de combustíveis e coloca em xeque um dos pilares da política nacional de descarbonização para o setor, estruturada no RenovaBio.
Nos dois casos, os magistrados determinam que depósitos judiciais sejam usados para a aquisição dos Créditos de Descarbonização (CBIOs) e cumprimento de metas em aberto das empresas nos últimos anos. Na prática, as decisões fixam preços dos créditos, que passam a ser definidos nas sentenças.
O entendimento é válido apenas para as empresas envolvidas no processo, mas pode abrir precedente para que outras distribuidoras possam judicializar pontos semelhantes da política pública, abrindo mais um flanco de questionamento ao RenovaBio.
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Em um dos casos, o juiz Alaôr Piacini autorizou que um depósito judicial de uma das distribuidoras seja usado para aquisição de CBIOs no valor de, no máximo, R$ 2,46 por unidade.
São valores bem mais baixos do que os praticados no mercado. A cotação média dos créditos em 2022 e 2023, anos em que a empresa não atingiu o objetivo de descarbonização através dos CBIOs, foi de R$ 94 e R$ 98, segundo o Índice de Crédito de Descarbonização (ICBio) da B3.
A sentença estipula que, com isso, a Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP) deve reconhecer o cumprimento da meta individual da companhia. O pagamento dos valores de 2024, que já acumulam os dois anos anteriores, poderá ser feito em 60 meses.
Além do cancelamento de multas e eventuais penalidades, as decisões também deixam as empresas de fora da “lista suja” da ANP, que publica desde julho uma relação de distribuidoras que não cumpriram as metas individuais de descarbonização do RenovaBio.
Na prática, retiram as empresas do bloqueio na comercialização, previsto pela Lei 15.082/2024. Pelo texto, fornecedores de combustíveis e biocombustíveis não podem atender distribuidoras que figuram na lista de inadimplentes feita pela agência reguladora.
Já o juiz Diego Câmara determina que a ANP e a União oportunizem a venda dos CBIOs para a empresa autora do processo. A decisão é de que os valores dos ativos devem ser o de mercado do ano em que deveria ser cumprida a obrigação da meta de descarbonização.
O magistrado defendeu que o caráter mercadológico do ativo, que é comercializado na B3, não faz distinção de ativos a partir de metas compulsórias ou excedentes. Com isso, a cotação do CBIOs se torna extremamente volátil. Para ele, trata-se de um obstáculo para o funcionamento do programa.
“O CBIOs, ainda que operacionalmente seja negociado em bolsa de valores, não ostenta natureza e finalidade própria de ativo financeiro, diante do propósito regulatório inerente a criação da norma legal (Renovabio), relacionada, notadamente, à proteção ambiental. É dizer, tal como organizado no contexto atual, eventual flutuação financeira expressivamente positiva resulta de atividade especulativa não necessariamente direcionada a produzir maior transferência de recursos ao produtor de biocombustível, e assim fomentar a preservação do meio ambiente, mas, lado outro, direciona-se a garantir retorno financeiro unicamente privado em boa parte captado por agentes econômicos alheios ao mercado de combustíveis”, escreveu.
Conversão em CBIO tem precedente
A transferência direta de depósitos judiciais para alcançar a meta individual de descarbonização já aconteceu no ano passado. O Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF1) determinou em novembro de 2024 que depósitos judiciais da distribuidora Biopetro fossem usados na aquisição de CBIOs.
Uma quantia de R$ 750 milhões depositados em juízo pela empresa foi incluída nas contas de suas metas de descarbonização para os anos de 2022 e 2023. O relator do caso, desembargador Flávio Jardim, defendeu à época a conversão dos depósitos em CBIOs “enquanto não corrigida a questão da excessiva volatilidade” dos ativos. Seu voto foi seguido pelos outros dois desembargadores da Turma.
A volatilidade dos preços também foi usada pela Biopetro. A companhia argumentou haver uma falta de previsibilidade da norma causada pela volatilidade do ativo. Em 2022, por exemplo, segundo o ICBio, o preço médio diário dos créditos de carbono oscilou de R$ 45,4 a R$ 202.
Os argumentos usados para a decisão também são semelhantes aos que foram defendidos na última semana. “A elevada volatilidade a que está sujeito o RenovaBio hoje tem sido um obstáculo ao seu próprio funcionamento e êxito. Quaisquer programas de comercialização de ativos de carbono, ou assemelhados, possuem volatilidade e isso é natural à formatação desse tipo de intervenção explícita do Poder Público. No entanto, lembro que não estamos falando de variações médias de 30% ou 40%, mas sim de 400%”, declarou Flávio Jardim em seu voto.
Governo tenta barrar liminares no STJ
Em maio deste ano, o Ministério de Minas e Energia (MME) ingressou com uma ação no Superior Tribunal de Justiça (STJ) pedindo a suspensão de diversas liminares que beneficiam as distribuidoras que não cumprem suas metas individuais no RenovaBio.
O objetivo do governo é tornar inválidas novas decisões de juízes de primeira instância, como as duas expedidas na última semana, até o julgamento completo sobre a regulamentação da lei no STJ.
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A legislação de 2024 atualizou as penalidades do programa, com a criação da “lista suja” e a restrição da comercialização de combustíveis com empresas inadimplentes.
A relação feita pela ANP, atualizada em 25/9, lista 52 liminares que retiram os nomes, o ano referência e o valor de créditos de descarbonização devidos pelas empresas. Com isso, as distribuidoras ficam livres para compra de combustíveis e biocombustíveis no mercado brasileiro.
Programa de 2017 acumula questionamentos
A alta volatilidade do mercado é um dos principais pontos criticados pelas empresas do setor de combustíveis. No ano passado, o setor chegou a ter 12 liminares vigentes para desobrigar as empresas de cumprir com suas metas de compras de CBIOs em troca do depósito de um valor estipulado por elas próprias em juízo.
O programa também é alvo de uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) no Supremo Tribunal Federal (STF). No início de 2024, o PRD ajuizou uma ação contra artigos da lei que instituiu o RenovaBio.
O partido afirma que trechos da norma ferem o princípio da isonomia por estabelecer que apenas os distribuidores de combustíveis fósseis sejam obrigados a compensar suas emissões de carbono por meio da compra de CBIOs. A ADI 7.596 tem relatoria do ministro Nunes Marques.
Os termos do cumprimento da obrigação das metas de carbono também têm sido questionados. Representantes de distribuidoras já foram ao Ministério do Desenvolvimento, Indústria, Comércio (MDIC) pedir reajustes na metodologia de precificação dos CBIOs e pediram ao Ministério Minas e Energia alterações no funcionamento do mercado de créditos de descarbonização.
Contexto
A política do Ministério de Minas e Energia, instituída em 2017, é alvo de grande judicialização, com cisão entre interesses de grandes distribuidoras, produtores e mercado, de um lado, e de parte das médias e pequenas que optam por questionar as obrigações.
O RenovaBio impõe a todas as distribuidoras a necessidade de compensar com a compra de “créditos de descarbonização” o impacto ambiental da venda de combustíveis fósseis. Esses créditos, os CBIOs, são gerados por produtores de combustíveis renováveis, como etanol e biodiesel, a partir do cálculo de quanto carbono deixaria de ser lançado na atmosfera em comparação com o uso equivalente de combustíveis fósseis. A lógica é de descarbonização do setor e também de uma transferência de renda para incentivar a produção de combustíveis renováveis.
O centro da questão é que as distribuidoras, sendo obrigadas a comprar os créditos para cumprir metas anuais, precisam adquiri-los no mercado, concorrendo com investidores que poderiam apenas estar comprando um ativo para investir. Com isso, os que recorrem à Justiça alegam que há grande volatilidade no preço, não revertida em ganho aos produtores, mas a investidores não relacionados à cadeia produtiva. E que esse quadro beneficia grandes distribuidoras, que poderiam bancar os custos e concentrar mais o mercado.
O contra-argumento dos defensores do RenovaBio, além dos impactos ambientais do programa, é que as distribuidoras que cumprem as obrigações concorrem em desvantagem com as que deixam de comprar os créditos ou se beneficiam de decisões judiciais que diminuem de alguma forma o custo da operação. Um exemplo é a troca da compra de CBIOs pelo depósito judicial de valores menores, definidos por juízes.