Devedor contumaz: novo arcabouço é bem visto por tributaristas e setores afetados

Uma investigação sobre sonegação e lavagem de dinheiro no setor de combustíveis em pelo menos oito estados foi a faísca necessária para movimentar o Congresso Nacional em torno da figura do devedor contumaz. O tema, que estava estagnado há meses, ganhou fôlego após a megaoperação “Carbono Oculto”, deflagrada em agosto pela Receita e pela Polícia Federal, além de órgãos parceiros.

Conheça o JOTA PRO Tributos, plataforma de monitoramento tributário para empresas e escritórios com decisões e movimentações do Carf, STJ e STF

Aprovado pelo Senado em 2 de setembro, cinco dias após a operação, o Projeto de Lei Complementar (PLP) 125/2022 cria um Código de Defesa dos Contribuintes e regulamenta a figura do devedor contumaz. O texto, que depende ainda de aprovação pela Câmara, define como contumaz aquele devedor cujo comportamento fiscal se caracteriza pela inadimplência reiterada, substancial e injustificada de tributos. 

No âmbito federal, o projeto estabelece que essa inadimplência ocorre quando o contribuinte tem débitos tributários a partir de R$ 15 milhões inscritos em dívida ativa ou declarados e não adimplidos. O valor precisa corresponder a mais de 100% do seu patrimônio informado no último balanço e estar em situação irregular em, pelo menos, quatro períodos de apuração consecutivos, ou em seis períodos de apuração alternados, no prazo de 12 meses.  

Também passa a ser considerado devedor contumaz aquele contribuinte que é parte relacionada de pessoa jurídica baixada ou declarada inapta nos últimos cinco anos, também com débitos a partir de R$ 15 milhões.

No âmbito estadual, distrital e municipal, cada ente definirá esse valor em legislação própria. O texto autoriza o Poder Executivo a aumentar ou restabelecer esses valores. Com isso, caso o contribuinte esteja enquadrado nesses termos e não tenha motivos objetivos que afastem a configuração da contumácia, ele será incluído no cadastro.

O texto também prevê que a Receita Federal poderá suspender o CNPJ de empresas classificadas como contumazes, paralisando suas atividades, e busca coibir a utilização de “laranjas” no setor de combustíveis.   

Receba de graça todas as sextas-feiras um resumo da semana tributária no seu email

Texto é bem visto por tributaristas e setores afetados

A aprovação do projeto foi considerada um avanço em termos de redução da sonegação e de diminuição de distorções concorrenciais. A avaliação de tributaristas e do setor é de que o texto delimita melhor o conceito de devedor contumaz e moderniza os mecanismos que promovem a cooperação, a exemplo dos programas de conformidade.

Vicente Braga, presidente da Associação Nacional dos Procuradores dos Estados e do Distrito Federal (Anape) e advogado tributarista, diz que o texto trouxe avanços ao especificar a caracterização do devedor contumaz não só a partir do valor da dívida, mas principalmente pela conduta reiterada. Para ele, a medida é positiva do ponto de vista social para as empresas.

“A partir do momento que se coloca uma mira maior no devedor contumaz, ou seja, naquele que age de forma deliberada para não pagar tributo, é possível trazer uma melhor arrecadação para o fisco e também melhorar o tratamento do mercado concorrencial e da livre iniciativa. A Constituição nos dá o dever de pagar o tributo e também nos garante um mercado concorrencial equilibrado. [Garante] que a livre iniciativa seja sempre do privado e que ele tenha a oportunidade de atuar em igualdade de condições com demais”, afirma.

O ponto alto do texto está na mudança de cultura no sentido da cooperação em matéria tributária, algo frequente na experiência internacional, conforme aponta o advogado Leonardo Aguirra de Andrade, sócio de tributário do escritório Andrade Maia. “Quando o texto prevê uma série de vantagens, bom tratamento, benefícios, celeridade para o bom pagador e para o que se chamou ali de contribuinte cooperativo, o texto vem em linha com o princípio da cooperação que foi inserido na Constituição Federal pela Emenda Constitucional 132, no contexto da reforma tributária do consumo”, afirma. 

Players do setor de combustíveis, que é diretamente afetado pela sonegação fiscal, também comemoraram a medida. Para o presidente do Instituto Combustível Legal (ICL), Emerson Kapaz, o texto que passou pelo Senado traz uma “caracterização muito clara” de quem deve ser considerado como contumaz, evitando que empresas de boa-fé sejam afetadas.

Ainda, Carlo Faccio, diretor do instituto, destaca que por mais que o projeto tenha como foco os tributos federais, o texto dá segurança aos estados para replicarem a medida em relação ao ICMS.

Inscreva-se no canal de notícias tributárias do JOTA no WhatsApp e fique por dentro das principais discussões!

Em aberto

Apesar dos elogios, especialistas também traçam críticas ao texto que passou pelo Senado. A advogada Débora Gasques, professora convidada pelo IBDT e sócia do Barral, Parente e Pinheiro Advogados, destaca que o inciso I do parágrafo 2º do artigo 11 do PLP prevê como um dos critérios para caracterização de inadimplência substancial de tributos a existência de valores em discussão judicial ou administrativa. O dispositivo define como elemento de inadimplência a existência de créditos em âmbito administrativo ou judicial de valor igual ou superior a R$ 15 milhões e correspondente a mais de 100% do patrimônio da companhia.

Para Gasques, esse critério pode “pegar” grandes contribuintes, que possuem valores altos em debate na Justiça ou na esfera administrativa. “Geralmente quem discute não são os sonegadores. Quem discute são os grandes contribuintes, que têm governança e compliance forte. Eles estão discutindo porque não concordam com a interpretação do fisco, e não porque são sonegadores contumazes”, disse.

A advogada Roberta França Porto de Mello, sócia do escritório HMLaw, chama a atenção para o fato de o texto aprovado não estabelecer critérios para identificar os contribuintes bons e cooperativos. Ela também destaca que a figura do devedor contumaz está prevista na legislação ordinária e há, por exemplo, a proibição de que a União realize transações com devedores em situação de contumácia (artigo 5º da Lei 13.988/20). 

“Ao Brasil não falta boa legislação já positivada, mas sim a observância e obediência às normas postas, tanto pelo contribuinte quanto pelas Fazendas Públicas. (…) O direito é dinâmico, novas regras podem ser bem-vindas, desde que busquem rigoroso fundamento de validade na Constituição, atendendo, em especial, às garantias e direitos fundamentais nela previstos”, diz. 

O texto não chegou a avançar nas propostas de emenda sobre o sistema monofásico nas importações de nafta e outros insumos utilizados na elaboração de gasolina. O tema ganhou mais fôlego depois da operação contra o uso do setor financeiro e de combustíveis para lavagem de dinheiro. Fontes do setor acreditam que o texto ainda pode ser modificado na Câmara dos Deputados para evitar desequilíbrios concorrenciais.

Assine gratuitamente a newsletter Últimas Notícias do JOTA e receba as principais notícias jurídicas e políticas do dia no seu email

Transação tributária

A procuradora da Fazenda Nacional Joana Marta Onofre de Araújo afirma que o projeto recém-aprovado representa um importante avanço em prol da Justiça Tributária, mas depende da atuação prática dos advogados públicos para impedir que o devedor contumaz busque negociar “como se fosse bom pagador ou fosse aquele devedor que ocasionalmente está passando por uma dificuldade econômica e de fato precisa desse suporte das procuradorias para continuar o seu negócio”.

“A partir dessa nova regulamentação [PLP 125/22] o que se espera é que jamais se cogite em a PGFN, ou outras procuradorias fiscais, sentar para negociar com esse tipo de devedor”, afirmou a procuradora durante o Congresso Nacional dos Procuradores dos Estados e do Distrito Federal, realizado em Fortaleza.

Araújo entende que é necessário que as procuradorias estaduais e municipais identifiquem exatamente quem é o devedor contumaz, com o objetivo de adotar estratégias de atuação diferenciadas conforme seu perfil. Ela considera problemático que, passados cinco anos da instituição da lei da transação tributária (Lei 13.988/2020), ainda haja muitos casos de transação com o devedor contumaz, devido à falta de regulamentação do conceito dessa figura. 

Tramitação 

O PLP tem chance de passar na Câmara dos Deputados se conseguir se manter na “onda” do discurso anticrime. A avaliação da classe política é de que o projeto dificilmente enfrentaria forte resistência, uma vez que trata-se de uma pauta sensível à opinião pública diante de um ano pré-eleitoral. A matéria faz parte da agenda prioritária da equipe econômica do governo. 

O futuro do PLP dependerá de como serão as primeiras conversas e a pressão de parlamentares que não simpatizam com o texto, como é o caso do presidente do PP, senador Ciro Nogueira. 

O deputado Danilo Forte (União-CE) já pediu a relatoria ao presidente da Câmara, Hugo Motta (Republicanos-PB). A tendência é de que o posto fique com Forte, que é relator de outro projeto similar, o PL 15/2024, que tramita na Câmara. A decisão cabe a Motta, que ainda não sinalizou sua decisão.  

Elaborado pela comissão de juristas que trata da reforma do processo tributário e administrativo, o projeto é de autoria do ex-presidente do Senado Rodrigo Pacheco (PSD-MG). 

Não há uma estimativa de arrecadação com a medida. O relator, senador Efraim Filho, afirma que cerca de R$ 200 bilhões foram perdidos pela Receita Federal devido à inexistência de patrimônio pelos devedores contumazes. Ele alega que ao menos 10% desse valor pode ser recuperado anualmente com o projeto – número que não é confirmado pela Receita Federal.

Generated by Feedzy