O Estado brasileiro reconheceu perante a Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH), em audiência pública realizada nesta sexta-feira (26/9), que violou direitos humanos relacionados às mortes de 96 recém-nascidos em uma clínica pediátrica em Cabo Frio (RJ).
Os bebês foram vítimas de infecções hospitalares adquiridas na Unidade de Terapia Intensiva Neonatal da Clínica Pediátrica da Região dos Lagos (Clipel), entre junho de 1996 e março de 1997. A unidade era conveniada ao Sistema Único de Saúde (SUS) e recebia recursos públicos para funcionar.
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Apesar do apoio estatal, a clínica não tinha autorizações sanitárias para operar no momento dos fatos. No período em questão, a unidade registrou a média de 33,1% de mortes de recém-nascidos.
Ílina Cordeiro de Macedo Pontes, advogada da União, pediu desculpas formais às famílias em nome do Estado, reconheceu violações aos direitos, mas pontuou que os fatos estão fora da jurisdição temporal da Corte IDH, pois são anteriores à adesão do Brasil à jurisdição contenciosa do tribunal, em 10 de dezembro de 1998.
“Evidente que o Estado brasileiro permitiu o funcionamento de uma clínica pediátrica sem as autorizações e inspeções necessárias à sua regular operação. Tais fatos, ainda que estejam fora da jurisdição temporal desta Corte e, por isso, não possam ensejar pronunciamento sobre a responsabilidade internacional do Estado, devem ser reconhecidos como violações a direitos humanos internacionalmente protegidos, em respeito à memória dos recém-nascidos falecidos e à verdade buscada pelos seus familiares”, disse a representante estatal.
O Brasil também admitiu que relatórios produzidos pelo Ministério da Saúde para apurar os fatos foram discriminatórios e, portanto, violaram o direito à igualdade perante a lei. Nos documentos, atribuía-se às mães a culpa pelas mortes de seus bebês.
“As manifestações do Ministério da Saúde (…) incorporam estereótipos de gênero que não se coadunam com a tradição histórica de respeito e acolhimento que marcam o sistema de saúde em nosso país”, comentou a advogada da União.
Posição das famílias
Helena Gonçalves dos Santos, mãe de um dos bebês mortos na clínica, agradeceu à Corte pelo julgamento, mas salientou que nenhuma reparação será suficiente para amenizar a dor de perder um filho.
“Queríamos estar com nossos filhos, hoje. Queríamos poder estar acompanhando um casamento, o nascimento de um neto. Queríamos estar com eles. Esse direito nos foi tirado. Não nos deixaram tocar, não nos deixaram amamentar. Não nos deixaram ser mãe”, lamentou.
Pai de outro recém-nascido vítima da Clipel, Cesar Alejandro Nicolas Éboli contou na audiência pública que o filho nasceu completamente saudável, mas foi levado sem necessidade para “tomar umas horas de oxigênio” na UTI. Ele lembrou quando, seis dias depois, presenciou a morte do filho.
“Quando fomos ver o bebê, nos deparamos com aquela cena horrível: por trás de um vidro, a médica a dois metros, com o cabelo solto dentro da UTI, nosso filho no braço, em frente a uma enfermeira. Elas conversavam como se estivessem em um café. Ficamos ali por quinze minutos. Ele estava sendo aspirado por hemorragia pulmonar. E nosso filho morreu, na nossa frente”.
As mortes foram posteriormente levadas à Justiça pelos familiares, mas todos os envolvidos, incluindo oito médicos da clínica, acabaram absolvidos em duas instâncias. Segundo Cesar Éboli, houve sumiço de provas durante os processos.
“Em todo o processo penal, não tem lugar nenhum a análise do prontuário do bebê. Os 69 prontuários que nós conseguimos estão desaparecidos. E são as provas principais do processo”, denunciou.
Em razão da não responsabilização de quaisquer envolvidos, as vítimas pediram também a condenação do Estado por violações aos direitos a garantias judiciais e à proteção judicial. O Brasil, no entanto, não reconheceu a responsabilidade nestes pontos, afirmando que adotou todas as medidas legais cabíveis.
Para a Justiça Global, organização que representa as vítimas, as mortes não são situações isoladas, mas fazem parte de um contexto de violações sistemáticas ao direito à saúde de recém-nascidos e de suas famílias no país.
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“Essas histórias não são apenas relatos de dor individual. Elas formam um quadro coletivo de violações massivas, em que o direito à vida, à saúde e à informação são sistematicamente negados”, afirmou a diretora-executiva Glaucia Marinho.
Daniela Fichino, advogada da Justiça Global, cobrou mais investimentos na saúde pública como medida de reparação ao caso. “O fortalecimento do SUS, com financiamento adequado, transparência, regulação rigorosa e investimento estrutural não é apenas uma política pública desejável, mas uma garantia de não repetição indispensável para que tragédias como a das mães de Cabo Frio jamais voltem a ocorrer”.
Roberta Clarke, relatora do caso pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), ressaltou que o caso é uma oportunidade para debater o fortalecimento dos direitos de mães e filhos em todo o continente. “Este caso oferece uma oportunidade para avançar na jurisprudência sobre o dever de investigar violações de direitos das crianças na assistência neonatal, incorporando uma perspectiva interseccional de gênero, que reconheça a vulnerabilidade das mães e evite estereótipos”.