Já faz mais de um semestre que uma proposta de projeto de lei vem sendo debatida pelo governo federal, voltada a endereçar a regulação de plataformas digitais sob uma perspectiva econômica.
O debate se iniciou ainda em 2024, com uma iniciativa da Secretaria de Reformas Econômicas do Ministério da Fazenda (SRE/MF) que resultou em um relatório detalhado sobre o assunto.
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Em linhas gerais, a conclusão da SRE foi no sentido de que algum tipo de regulação ex ante – ou seja, de criação de regras gerais para o mercado, que se aplicam aos agentes econômicos independentemente de suas condutas em concreto – faz sentido, mas que é importante garantir flexibilidade e adaptabilidade a essas eventuais normas. A referência mais explícita feita pela Fazenda foi ao modelo britânico, conhecido como Digital Markets, Competition and Consumers Act (DMCC).
Aprovado em 2024 e em vigor desde janeiro deste ano, o DMCC institui um procedimento para designar plataformas com “status estratégico de mercado” (SMS, na sigla em inglês), em linha com o modelo do Digital Markets Act (DMA) da União Europeia.
A principal diferença em relação à controversa lei europeia reside, porém, no fato de que, ao contrário das obrigações pré-definidas do DMA, o DMCC confere à autoridade concorrencial britânica maior flexibilidade e discricionariedade para estabelecer códigos de conduta personalizados, fundamentados em evidências e na avaliação de casos concretos.
Agora, uma proposta nesse sentido chegou de fato ao Congresso Nacional. Apresentado na mesma data em que foi sancionado o ECA Digital (Lei 15.211/2025), que trata da proteção de crianças e adolescentes no ambiente digital, o projeto institui novos procedimentos a cargo da autoridade concorrencial brasileira, o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade), voltados especificamente a plataformas digitais: um para a designação de plataformas com relevância sistêmica nos mercados digitais e outro para a imposição de obrigações especiais às plataformas assim designadas.
A designação será realizada com base em um critério objetivo, o faturamento (superior a R$ 5 bilhões anuais no Brasil e R$ 50 bilhões no plano global), e também em critérios qualitativos, voltados a avaliar a efetiva capacidade daquela empresa em particular de exercer um papel central nos ecossistemas digitais.
A definição de obrigações especiais para os agentes designados, por sua vez, também terá de ser avaliada pelo Cade, que poderá fixar penalidades pelo descumprimento. Essas obrigações serão determinadas dentre um rol amplo de alternativas, que incluem desde a obrigação de informar à autoridade todas as operações feitas pela empresa (mesmo aquelas que não cumprem os critérios mínimos a que estão sujeitos todos os demais agentes econômicos), até imposição de mecanismos de interoperabilidade, determinar acesso a dados, viabilizar alteração de configurações padrão, entre outras.
Para operacionalizar esses novos instrumentos, a intenção é criar a Superintendência de Mercados Digitais (SMD), unidade especializada que deverá tanto monitorar os mercados digitais quanto instruir os novos processos de designação e de imposição de obrigações especiais. Essa unidade deverá ainda acompanhar o cumprimento das eventuais determinações levadas a cabo pelo tribunal (a instância decisória máxima do Cade) e investigar possíveis violações.
Um aspecto importante e que estabelece uma dinâmica não tão comum em temas antitruste é a previsão de realização de audiência pública e contribuições da sociedade civil ao longo dos procedimentos. Ainda que exista hoje na legislação a previsão de participação de “terceiros interessados”, esse instrumento é utilizado fundamentalmente por agentes econômicos ou associações empresariais afetadas de maneira direta por uma operação econômica ou investigação.
Essa abertura explícita à participação ampliada pode estabelecer novos parâmetros para a atuação do Cade. É verdade, também, que a autoridade já vem ensaiando esse tipo de abertura. Em 2025, realizou audiência pública voltada a avaliar ecossistemas de dispositivos móveis, e mais recentemente abriu para comentários da sociedade um processo administrativo que trata de eventual uso indevido de conteúdo jornalístico de terceiros, exibidos diretamente na página de busca do Google.
Como a SRE/MF já havia observado, a escolha do Cade para as novas atribuições se justifica tanto pela expertise acumulada pela autoridade antitruste, quanto pelo modelo de regulação proposto. A experiência em outras jurisdições que propuseram regimes ex ante flexíveis para a disciplina de plataformas confirma que, em grande parte, esta formulação depende fortemente de cooperação entre administrados e regulador para ter sucesso.
É fato que a autoridade tem ampla experiência em negociações com privados, tendo sido a primeira do Brasil a implementar uma política de acordos, ainda em 2000. É igualmente verdade, no entanto, que o desafio aqui não é trivial e, como destacado no próprio projeto, demanda um engajamento alto da autoridade com o desenho do funcionamento dos mercados.
Em boa medida, o sucesso da iniciativa depende da garantia de capacidades institucionais adequadas, que se expressam de diversas formas, desde a existência de um corpo técnico preparado para o desafio, até a disponibilidade de softwares e ferramentas computacionais capazes de dar apoio às equipes.
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Ainda há um longo caminho a ser percorrido no Legislativo para que o projeto se torne lei. Mas é inegável que o envio da proposta é um marco para o debate. É a primeira alteração na lei de defesa da concorrência desde 2011, quando o atual texto foi aprovado e fez mudanças significativas no regime antitruste no país.
Nesse sentido, o ministro Fernando Haddad destacou que a proposta é importante para adaptar o regime concorrencial à nova realidade de mercado e assim preservar a concorrência e proteger todos os agentes econômicos, não apenas as pequenas e médias empresas. Resta aguardar se o Congresso concordará com essa leitura, e como receberá a proposta do Executivo.