Avocação de autos de infração e violação da Convenção 81 da OIT

Manifestação da Consultoria Jurídica junto ao Ministério do Trabalho e Emprego, datada do último dia 9 de setembro, foi favorável à avocação, pelo ministro do Trabalho, de processo administrativo envolvendo a JBS Aves Ltda em caso de submissão de trabalhadores a condições análogas à escravidão.

Trecho do documento evidencia questões econômicas e políticas como motivos para avocação do processo do corpo técnico:

A eventual inscrição no referido cadastro possui repercussão econômica e jurídica de ampla magnitude, com reflexos diretos na esfera patrimonial da empresa, em suas relações comerciais, na imagem perante o mercado e, em última análise, pode gerar significativo impacto no próprio setor econômico em nível nacional, inclusive com possíveis desdobramentos internacionais. 19. Diante da notória complexidade fática e jurídica, da extrema gravidade das alegadas infrações e do potencial de alcance nacional das consequências jurídico-econômicas decorrentes do resultado final do processo, mostra-se adequado e recomendável o exercício do poder avocatório. 20. A medida, portanto, representa o legítimo exercício de competência legal atribuída à Autoridade Máxima da pasta para reexame de matérias de excepcional relevância, como a presente, garantindo-se, sempre, o respeito ao contraditório e à ampla defesa. 21. Este ato permitirá uma reavaliação unificada e estratégica do caso, garantindo segurança jurídica à decisão e a devida uniformização da interpretação legal perante um fato de tamanha relevância, sempre com a observância das garantias processuais do administrado[1].

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O entendimento da Conjur/MTE expõe contradição fundamental entre o exercício do poder hierárquico previsto no artigo 638 da CLT e os compromissos internacionais assumidos pelo Brasil através da Convenção 81 da Organização Internacional do Trabalho. O episódio transcende a análise de mera legalidade formal e exige exame aprofundado sob a perspectiva do controle de convencionalidade, instrumento jurídico que impõe a compatibilização dos atos administrativos nacionais com as normas internacionais de direitos humanos incorporadas ao ordenamento brasileiro.

O artigo 6º da Convenção estabelece princípio basilar e inegociável: o pessoal da inspeção será composto de funcionários públicos cujo estatuto e condições de serviço lhes assegurem estabilidade nos seus empregos e os tornem independentes de qualquer mudança de governo e de qualquer influência externa indevida.

Essa norma não constitui mera recomendação programática, mas obrigação jurídica vinculante que condiciona a validade dos atos administrativos nacionais. A independência técnica da inspeção do trabalho configura elemento estruturante do sistema de proteção trabalhista, sem o qual a própria eficácia da fiscalização resta comprometida.

O despacho da Conjur/MTE revela a incompatibilidade estrutural entre a avocação ministerial e os princípios da Convenção 81. Ao argumentar que a potencial caracterização de trabalho escravo, considerando o porte e a relevância econômica da empresa envolvida, transcende o interesse meramente individual e justifica a intervenção do ministro, estabelece-se critério de seletividade que subverte a lógica da proteção trabalhista. A relevância econômica do infrator torna-se paradoxalmente fundamento para afastar a aplicação técnica e impessoal da lei, criando sistema de justiça administrativa dual no qual o poder econômico determina o grau de interferência política no processo sancionador.

A gravidade do caso concreto amplifica a problemática da interferência política. Tratando-se de processo que pode resultar na inclusão da empresa no Cadastro de Empregadores que tenham submetido trabalhadores a condições análogas à de escravo, com a própria Conjur reconhecendo a existência de indícios robustos dessa violação extrema aos direitos humanos, a avocação ministerial estabelece precedente perverso.

Permite-se que empregadores com poder econômico e político suficiente negociem em instância política decisões que deveriam permanecer no âmbito técnico, comprometendo a integridade do sistema de combate ao trabalho escravo.

A avocação ministerial baseada em considerações sobre relevância econômica da empresa configura influência externa indevida vedada pelo artigo 6º da Convenção. A possibilidade de o ministro revisar decisões técnicas da fiscalização, especialmente em casos graves como trabalho escravo, compromete a independência técnica garantida pela norma internacional. O argumento de que a medida permitirá reavaliação unificada e estratégica substitui análise técnica por cálculos políticos, subvertendo a natureza da inspeção do trabalho.

A formulação utilizada pela Conjur de que a avocação representa legítimo exercício de competência hierárquica ignora que essa hierarquia encontra limite nas normas internacionais incorporadas ao ordenamento brasileiro. A Convenção 81 não é mera diretriz administrativa, mas norma de direitos humanos que condiciona o exercício do poder administrativo. Sua violação não pode ser legitimada por invocação genérica de princípios hierárquicos ou competências legais internas que com ela conflitem.

Em outra situação, na qual também foi realizada uma tentativa de interferência política no combate ao trabalho escravo e na publicação da Lista Suja, foi ajuizada a ADPF 489/DF, cuja decisão cautelar registrou:

“(…) a exigência de ato prévio do Ministro do Trabalho para inclusão do empregador na “lista suja” do trabalho escravo, bem como para a divulgação dessa lista, como prescrevem o art. 3o, § 3o, e o art. 4o, § 1o, da Portaria 1.129/2017, são medidas administrativas que limitam e enfraquecem as ações de fiscalização, ao contrário de promoverem a diligência necessária para a adequada e efetiva fiscalização. Ainda constituem medidas que condicionam a eficácia de uma decisão administrativa a uma vontade individual de Ministro de Estado, que tem notório viés político”.

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Nesse julgado o próprio STF reconheceu que interferências políticas na publicação da Lista Suja enfraquecem a fiscalização, em argumento igualmente aplicável ao caso analisado, pois uma avocação nitidamente política poderá permitir que empregador dotado de relevante poder econômico, mesmo autuado por auditores fiscais do trabalho em razão da submissão de pessoas a condições análogas à escravidão, escape da punição administrativa e da própria divulgação do caso na Lista Suja.

A solução jurídica, portanto, impõe-se com clareza: o ato administrativo de avocação deve ser declarado incompatível com a Convenção 81 e, portanto, inválido sob a perspectiva do controle de convencionalidade. A preservação da autonomia técnica da fiscalização não é questão de preferência administrativa, mas obrigação jurídica decorrente de tratado internacional.

[1] Disponível em: https://noticias.uol.com.br/colunas/leonardo-sakamoto/2025/09/18/ministro-do-trabalho-suspende-entrada-da-jbs-na-lista-suja-da-escravidao.htm

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