Desmistificando a pacificação enquanto estratégia narrativa pró-anistia

O debate em torno do projeto de lei que busca anistiar os envolvidos na tentativa de golpe de Estado, que culminou em 8 de janeiro de 2023, tem se articulado, pelo centrão e pelo bolsonarismo, em torno de um mito: a pacificação.

O julgamento inédito que levou à condenação de Jair Bolsonaro e outros sete na trama golpista pelo Supremo Tribunal Federal mobilizou estratégias narrativas que buscam minimizar as articulações desse grupo que buscavam romper com a ordem constitucional. Inicialmente, frente à condenação dos que estavam presentes em Brasília e que depredaram o patrimônio público com um prejuízo inestimável, se falava em excesso de pena, até mesmo usando comparações a outros tipos penais. Houve resposta no próprio STF: “8 de janeiro não foi passeio à Disney”[1] já que “não se rompe linha policial com flores e chocolates”.[2]

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Tais narrativas refletem a busca por depreciar a gravidade que existe na tentativa de abolir o Estado de Direito. Esse cenário se expandiu para a ideia de que deveria ocorrer uma anistia, que representa uma medida de impunidade diversas vezes utilizada no Brasil. A justificativa seria a da necessidade de pôr fim a “polarização” que estaria sendo vivenciada no país.

Observando isso, é preciso destacar a importância da memória, neste caso, como um instrumento de permanente vigilância da estrutura democrática. Aqui, recorro a Eduardo Galeano, na clássica obra As veias abertas da América Latina: “A história é um profeta com o olhar voltado para trás: pelo que foi e contra o que foi, anuncia o que será”.

O processo de transição da ditadura militar para o período de democratização, que culminou na Constituição de 1988, ocorreu em meio a uma intensa negociação que terminou em uma ordem benevolente com os líderes autoritários responsáveis pela violação de diversos direitos e, principalmente, pela morte de seus opositores.

Ao longo dos anos, é perceptível que a relação dos brasileiros com a ditadura se teve pouco distante de uma insatisfação plena – ao ponto de persistir, com naturalidade, um discurso favorável a esse Estado de exceção, inclusive com defesa ao AI-5, o ato mais extremista daquele momento histórico, com notório apoio do grupo condenado pelo STF.

Apesar de ser uma ideia com baixa adesão, de maneira geral, não existe uma grande aversão da população brasileira à ideia de regime ditatorial. A provocação aqui pretendida parte de considerar que esse processo de transição, que beneficiou muitos militares e políticos envolvidos no período ditatorial, somado à pouca importância dada à memórial produziu um cenário de ausência de sentimento democrático pleno na população brasileira. Isso se reflete na irrisória criticidade à ideia de anistia aos envolvidos no 8 de janeiro de 2023.

Por sentimento democrático, tomo por empréstimo a ideia de sentimento constitucional que “consiste na adesão interna às normas e instituições fundamentais de um país”. No Brasil, o professor e ministro Luís Roberto Barroso reflete sobre esse conceito na esteira da Constituição de 1988 entendendo que o seu apogeu e o sentimento de pertencimento da população “é algo que merece ser celebrado”. Entretanto, esse apego ao texto parece ter ficado mais na sua dimensão que garantiu uma expansão da ideia de cidadania e deixou de ser ampla na perspectiva de defesa de uma ordem democrática.

Ocorre que esse processo foi mais acentuado com a ascensão de um político extremista ao poder, de modo a reduzir a preferência da população ao sistema democrático. O forte discurso e ações que provocaram a erosão das instituições e de direitos fundamentais, a partir de 2018, não comoveu certas parcelas populacionais, que defendiam a existência de uma legitimidade para tais movimentações autoritárias. Foi essa conjuntura que culminou na ideia de vale-tudo que está no cerne da tentativa de golpe.

Aqui está o ponto fulcral que desnuda o discurso da pacificação: busca-se privilegiar um grupo político liderado por um ex-presidente que, em seu mandato, agiu de forma a não aderir à ideia de pacificação, na medida em que encorajava a violência[3], como propor fuzilar comunistas, ou se mostrava favorável a medidas que atacam grupos historicamente vulnerabilizados.

Não existe, entretanto, uma “polarização” quanto ao projeto de anistia: 54% da população é contrária à anistia, somente 39% apoiam, segundo pesquisa Datafolha[4]. Se esse termo for empregado no sentido da existência de fortes oposições ideológicas, trata-se de algo natural e recorrente dentro da política.

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Não se trata, sobretudo, de algo novo na democracia brasileira. Antes da tentativa de golpe, já existia esse acirramento, ainda mais incendiado pelo próprio Bolsonaro, ou, anteriormente, com a disputa de anos envolvendo PT e PSDB – apesar desta ainda se manter dentro de uma normalidade constitucional.

Assim, mais do que reforçar a gravidade de violência empregada naquele momento histórico, urge a pressão social em torno de um freio a qualquer proposta de anistia. Trata-se de um empenho que pode contribuir para evidenciar a necessidade de emergir um sentimento da população em defesa da ordem democrática brasileira, fortalecendo instituições que vêm sendo recorrentemente atacadas nos últimos anos.

[1]JOTA. “’Não foi passeio na Disney, foi tentativa de golpe de Estado’, diz Moraes ao se contrapor a Fux”. Disponível em: https://www.jota.info/stf/do-supremo/nao-foi-passeio-na-disney-foi-tentativa-de-golpe-de-estado-diz-moraes-ao-se-contrapor-a-fux .

[2] O GLOBO. Bíblia verde e amarela, flores e chocolates: as ironias de Dino no julgamento da trama golpista. Disponível em: https://oglobo.globo.com/politica/noticia/2025/09/09/biblia-verde-e-amarela-flores-e-chocolates-as-ironias-de-dino-no-julgamento-da-trama-golpista.ghtml

[3] Barboza, ESTEFÂNIA MARIA DE QUEIROZ; Inomata, ADRIANA. NOVOS AUTORITARISMOS E LAWFARE: O JUDICIÁRIO COMO VÍTIMA?. Disponível em: https://www.academia.edu/77228043/NOVOS_AUTORITARISMOS_E_LAWFARE_O_JUDICI%C3%81RIO_COMO_V%C3%8DTIMA.

[4] FOLHA DE S. PAULO. Datafolha: 54% rejeitam anistia a Bolsonaro; 39% apoiam. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/poder/2025/09/datafolha-anistia-a-bolsonaro-e-rejeitada-por-54-e-aprovada-por-39.shtml

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