A publicação da MP 1317/2025 transformou a Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD) em Agência Nacional de Proteção de Dados. Trata-se de um marco para o ambiente de proteção de dados no Brasil, especialmente para quem acompanha a trajetória da agora agência desde a sua criação via Medida Provisória em 2018.
Esse percurso institucional da ANPD revela não só uma mudança de percepção do Estado quanto à importância da proteção de dados pessoais, mas vem especialmente em um momento de profundas mudanças sociais, políticas e tecnológicas vinculadas à utilização de novas tecnologias, especialmente aquelas ligadas à inteligência artificial – que, não por acaso, a ANPD terá papel fundamental em sua regulação.
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Quando nasceu, pela MP 869/2018, a ANPD foi estruturada como órgão administrativo, com forte dependência da Casa Civil, cargos em comissão remanejados e orçamento restrito. A autonomia técnica prevista era, em grande medida, retórica. Foram vários os artigos especializados que denunciavam essa fragilidade inicial da ANPD.
Esses percalços iniciais foram parcialmente tratados com a transformação, realizada pela MP 1124/2022 (convertida na Lei 14.460/2022), que consolidou a condição da Autoridade como uma autarquia de natureza especial, mas ainda assim com estrutura limitada.
Agora, a transformação em agência reguladora encerra esse ciclo: a ANPD passa a contar com autonomia funcional, técnica, administrativa e financeira, quadro de servidores próprios e instrumentos mais claros de poder de polícia. A transição da agência, agora integrante da estrutura do Ministério da Justiça e Segurança Pública, reforça seu caráter de política de Estado.
A criação da Carreira de Regulação e Fiscalização de Proteção de Dados é talvez o ponto mais inovador da MP. Diferentemente da fase inicial, em que a ANPD dependia de servidores cedidos, a nova estrutura permite a formação de corpo técnico especializado e permanente, com atribuições típicas de agências reguladoras: fiscalização, inspeção, normatização e aplicação de sanções.
A previsão expressa de prerrogativas de interdição, apreensão de bens e requisição de apoio policial demonstra que a proteção de dados não é mais apenas um tema consultivo, mas um campo sujeito a enforcement efetivo. Essa mudança altera o comportamento esperado das empresas e órgãos públicos: o risco de sanção se torna mais concreto e palpável, o que deve reforçar investimentos em governança e compliance.
Outro impacto relevante da mudança é a consolidação da ANPD no modelo das agências reguladoras brasileiras, regido pela Lei 13.848/2019. Isso significa mandatos fixos e não coincidentes para os diretores, processos decisórios mais transparentes, regras de prestação de contas e maior blindagem contra ingerências políticas imediatistas.
A consequência direta é maior qualidade técnica e o aumento da segurança jurídica para regulados e titulares de dados. Empresas passam a lidar com um órgão mais previsível e estável, capaz de construir entendimentos técnicos consistentes. Ao mesmo tempo, titulares de dados podem esperar maior continuidade na tutela de seus direitos.
Se internamente a mudança fortalece a agência, no plano internacional ela é estratégica. A União Europeia já demonstrou interesse em avaliar o Brasil para uma decisão de adequação — o reconhecimento formal de que o país oferece grau equivalente de proteção de dados pessoais ao estabelecido pelo GDPR.
Um dos critérios centrais dessa avaliação é justamente a independência e robustez da autoridade supervisora. A evolução normativa da ANPD, agora na condição de agência reguladora, responde diretamente a essa exigência. Com a mudança, o Brasil se coloca em condições mais favoráveis para obter esse reconhecimento, que reduziria barreiras para transferências internacionais de dados, diminuiria custos de compliance e aumentaria a competitividade do país no mercado digital global.
A trajetória da ANPD retrata a própria evolução da política de proteção de dados no Brasil. O que começou como um arranjo provisório, “sem aumento de despesa”, hoje se consolida como agência reguladora autônoma, profissionalizada e internacionalmente reconhecível.
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O desafio, daqui em diante, será garantir que a autonomia seja efetiva, que a carreira de regulação seja implementada com concursos bem estruturados e que a ANPD consiga equilibrar fiscalização firme com diálogo com o mercado e a sociedade civil, especialmente diante da esperada ampliação da sua atuação e responsabilidades de fiscalização ligadas ao marco regulatório da inteligência artificial no Brasil, o PL 2338/2023.
Por fim, a nova Agência Nacional de Proteção de Dados demonstra não só uma troca de sigla ou título. É o resultado de um órgão que deve ser capaz de assegurar que a proteção de dados pessoais seja, de fato, um direito fundamental no Brasil, e de projetar o país como ator relevante na governança digital global.