O Brasil é um país conhecido pela máxima “é preciso que tudo mude para que tudo permaneça como está”. Poucas mudanças ocorreram por aqui de baixo para cima e, diante de momentos de tensão e ameaças de sublevação do povo contra as elites, constrói-se, sob o nome de “pacificação”, uma “solução” por cima que não altere os problemas sistêmicos da sociedade brasileira. Cria-se, assim, uma aparência de conciliação que não resolve em nada a essência do problema.
O Congresso ou, especificamente, a direita e extrema direita, em apenas dois dias, conseguiram produzir absurdos sem paralelo na história do país. Não bastasse a PEC da Blindagem — ou “PEC da Bandidagem” —, aprovaram pedido de urgência para o PL da Anistia a condenados por atos golpistas.
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Tudo isso ocorre em meio a investigações da Polícia Federal que ligam o crime organizado à Faria Lima e políticos e ao avanço no STF de cerca de 80 inquéritos sobre o mau uso de emendas parlamentares. Entre os casos mais escandalosos até o momento destaca-se o de Antônio Rueda, presidente do União Brasil, suspeito de ser proprietário de jatinhos que teriam sido usados pelo PCC.
Portanto, não é apenas o baixo clero que está acuado por investigações, mas também caciques da política. Diante disso, está ocorrendo uma queda de braço em Brasília entre as elites do poder, que, na definição do sociólogo C. W. Mills, correspondem a um pequeno grupo de indivíduos no topo das três principais instituições da sociedade: os poderes político, econômico e militar.
De um lado, personagens da tradição brasileira de não enfrentar seus problemas estruturais buscam a conciliação por cima, via “acordões” entre setores das elites, prática consolidada no país e a prata da casa histórica brasileira. É importante lembrar que o Supremo Tribunal Federal (STF) já se valeu dessa prática no passado e tudo indica que está disposto a repeti-la, segundo relatos da imprensa. É só recordar o áudio da conversa entre Sérgio Machado e Romero Jucá durante a Operação Lava Jato: “Tem que ter o impeachment. (…) A solução mais fácil era botar o Michel [Temer] (…) num grande acordo nacional. Com o Supremo, com tudo”.
Do outro lado, forças de dentro e de fora dessas elites pressionam para que não haja recuo diante da conjuntura atual de clara indignação popular, que, caso não seja resolvida a contento, poderá gerar uma situação-limite imprevisível resultando em uma onda de manifestações que adentrarão o ano eleitoral. O sucesso das manifestações da esquerda e de setores da sociedade no último domingo (21) contra a PEC da Blindagem e o PL da Anistia torna esse cenário bastante plausível.
O pai da ciência política, Nicolau Maquiavel, tratou do que acontece quando o sistema republicano se degenera pela corrupção na sua obra Comentários sobre a Primeira Década de Tito Lívio.
O ideal, segundo Maquiavel, é que as sociedades republicanas atuem na prevenção da corrupção por meio da vigilância constante e da criação de instituições fortes que se renovem periodicamente e que promovam a educação cívica entre seus cidadãos. Porém, o pensador florentino avalia que, após a erosão das virtudes cívicas em uma República, fruto da prevalência dos interesses privados sobre o bem público, torna-se muito difícil para uma sociedade conseguir superar essa degenerescência e reverter a situação, sendo necessárias medidas extremas para solucionar o problema.
Isso ocorre porque em uma sociedade corrupta cidadãos corrompidos elegem líderes corrompidos, que por sua vez destroem ainda mais as instituições. O status quo, portanto, beneficia os corruptos, enquanto aqueles que se preocupam com o bem comum são desencorajados a participarem da vida pública, perseguidos ou eliminados.
Como já discutido nesta coluna em artigo anterior, é preciso lembrar que a corrupção não é um problema de origem moral e individual, mas de caráter sistêmico e histórico, fazendo parte do próprio modus operandi do sistema capitalista, especialmente em sociedades extremamente desiguais como a brasileira, nas quais o dinheiro e o poder concentram-se muito em apenas alguns poucos indivíduos de um lado da balança.
Para solucionar este problema, Maquiavel aponta dois caminhos: o da concentração temporária de poderes em um indivíduo reformador que purgará as instituições corrompidas e reeducará os cidadãos sobre suas obrigações cívicas; ou a refundação completa da República sobre bases mais sólidas, não sendo descartado o uso da violência para isso.
Essas soluções podem ser observadas ao longo da história, inclusive na recente quando os povos do mundo, percebendo que o sistema neoliberal não os representa e beneficia apenas os mais ricos em detrimento da maioria, começaram a se revoltar contra esse sistema e, na ausência de um projeto realmente transformador por parte das esquerdas, passaram a eleger “outsiders”, “salvadores da pátria” autointitulados “antissistema” como solução para suas demandas.
O segundo caminho seria o de reformas profundas dentro do sistema ou o de uma revolução (“refundação” nas palavras do político italiano). Como as elites do poder lutam com unhas e dentes para manter-se no poder, torna-se muito difícil reformar uma república corrompida pelas razões já citadas acima. Portanto, na ausência de um caminho por dentro do próprio sistema vigente, eventualmente passa-se à via revolucionária, mais violenta, como meio de se democratizar o regime.
É o que está sendo visto agora, por exemplo, em países como a Indonésia e o Nepal onde, após vários anos de crises econômicas e abusos por parte das classes políticas destes países, estouraram recentemente uma série de protestos violentos que perduram e resultaram nas mortes de civis e de membros e ex-membros dos governos, levando inclusive à instalação de um novo governo no caso nepalês.
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No Brasil e ao redor do mundo os povos já estão há muitos anos dando sinais de alerta de esgotamento com o sistema neoliberal e com os privilégios que ele gera para um pequeno grupo que detém o poder político e econômico.
No caso brasileiro, a revolta contra o sistema político que deu origem às Jornadas de Junho de 2013 ainda não acabou. Ela está latente e apenas foi cooptada pela extrema direita, que assumiu o papel de antissistema diante da inércia da esquerda institucional que governava o país na época e que agora voltou a governar sem, no entanto, realizar mudanças estruturais.
A corda, portanto, está sendo esticada cada vez mais e, mesmo em sociedades conservadoras como a brasileira, já vimos que uma hora ela arrebenta. Porém, parece que as elites do poder no Brasil preferem pagar para ver na crença de que conseguirão mais uma vez “pacificar” a sociedade sem, entretanto, resolver a origem do problema.