A chamada PEC da Blindagem, aprovada recentemente na Câmara dos Deputados em rito legislativo sui generis, altera de modo profundo o regime das imunidades parlamentares. A proposta visa a resgatar a exigência de licença prévia da Casa legislativa para que deputados e senadores sejam processados criminalmente pelo Supremo Tribunal Federal e determina que essa deliberação ocorra por voto secreto. Além disso, restringe o alcance das medidas cautelares aplicáveis e amplia o foro por prerrogativa de função a dirigentes partidários.
Um dos argumentos centrais em sua defesa é histórico: se a redação original da Constituição de 1988 já consagrava a licença prévia e o voto secreto, então não haveria óbice para que o poder constituinte derivado os reintroduzisse. À primeira vista, a justificativa pode soar plausível. Mas esconde um problema bastante sério: a interpretação constitucional não pode se prender a um texto superado. Ao contrário: deve sempre considerar o sentido integral da Constituição em vigor, resultante de todas as suas emendas válidas.
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Na versão promulgada em 1988, o art. 53 previa que parlamentares não poderiam ser processados criminalmente sem a licença de sua Casa. Em caso de prisão em flagrante de crime inafiançável, cabia à Casa deliberar, por voto secreto, sobre a prisão e sobre a autorização da formação de culpa. A lógica era de ampla blindagem frente à jurisdição penal (pouco importasse o crime em tese cometido).
Esse regime foi significativamente alterado pela Emenda Constitucional 35, de 2001. A exigência de licença prévia foi eliminada. Em seu lugar, estabeleceu-se a possibilidade de a Casa sustar o processo já instaurado, por decisão da maioria e mediante voto público.
A partir daí, o Judiciário passou a poder abrir ações penais contra parlamentares, cabendo ao Legislativo apenas uma intervenção excepcional. A EC 35 marcou uma mudança de paradigma: reduziu a interferência política direta na persecução penal e aproximou o sistema brasileiro de parâmetros de transparência compatíveis com democracias consolidadas.
A PEC da Blindagem, aprovada agora pela Câmara, busca inverter esse caminho: restabelece a autorização prévia, reintroduz o voto secreto e recria uma barreira ainda mais protetiva do que a de 1988. Uma das justificativas de seus defensores é simples: se já constou do texto original, pode voltar. Porém, essa ordem de interpretação não se sustenta e faz séria confusão entre os conceitos de constituinte originário e derivado.
A bem da verdade, esse raciocínio ignora o princípio da unidade da Constituição e desconhece os efeitos sistêmicos das emendas constitucionais. Cada emenda recompõe o sistema constitucional, atribuindo-lhe novo sentido. As normas constitucionais não são autônomas entre si, mas se explicam umas às outras se e enquanto vigentes.
A Constituição não é um estoque de normas que podem ser resgatadas a qualquer tempo; é um organismo normativo que se reconstrói continuamente. O sentido da norma constitucional que hoje vive no Brasil não é aquele de sua redação que não mais existe. Não faz sentido algum pretender resgatar algo que, em termos jurídicos, nada é.
Interpretar a Constituição vigente significa compreender também o resultado das reformas já incorporadas (e não as suas premissas). O que foi suprimido pela EC 35/2001 não pode ser restaurado como se fosse uma cláusula latente, uma fênix normativa à espera da ressureição.
Ao contrário: a redação original que foi suprimida do texto é um zero absoluto em termos de hermenêutica constitucional. Pode – e deve – se prestar a estudos de história, mas não como meio de legitimar incursões inconstitucionais violadoras da atual integridade da Constituição. Essa interpretação retrospectiva pretende congelar o tempo e atar-se ao passado – quando, na verdade, a Constituição se projeta para o futuro.
Ora, sabemos que o poder constituinte originário é ilimitado: podia, em 1988, prever licenças prévias, voto secreto ou blindagens ainda mais severas. O poder constituinte derivado, ao contrário, é limitado pelas cláusulas pétreas tal como existentes em seu momento de deliberação. Ele não herda nem a liberdade nem o texto originários. Assim, a questão não é se a regra foi possível em 1988, mas se é compatível com o atual núcleo intangível da Constituição – em especial, a separação de Poderes e a efetividade dos direitos fundamentais.
Note-se que esse aspecto é decisivo. A separação de Poderes não é detalhe de arquitetura institucional, mas sim cláusula pétrea que protege a independência do Judiciário e o equilíbrio da República. Subordinar o início de um processo penal à autorização política do próprio investigado não é mera prerrogativa funcional: é um bloqueio estrutural ao exercício da jurisdição. Pode ter sido aceitável em 1988, no contexto da transição democrática, mas se tornou incompatível com o amadurecimento institucional posterior. O que antes era tolerável pelo constituinte originário hoje configura retrocesso vedado ao constituinte derivado.
Um exemplo extremo ajuda a esclarecer. Suponha que a redação original da Constituição de 1988 houvesse admitido a pena de morte para determinados crimes hediondos, como exceção a ser interpretada restritivamente. Isso seria vexatório, mas não impossível para o constituinte originário.
Se, em seguida, uma emenda constitucional abolisse essa possibilidade, proibindo a pena de morte para tais crimes, a Constituição passaria a significar a rejeição definitiva dessa pena. Tentar reintroduzi-la, ainda que por emenda, seria impossível, por ofensa às cláusulas pétreas de proteção à vida e aos direitos fundamentais.
O mesmo raciocínio vale para garantias extraordinárias de blindagem de parlamentares: o simples fato de terem constado do texto original não lhes confere qualquer direito de retorno. O que vincula o intérprete não é a arqueologia de 1988, mas a verdadeira Constituição atual, em sua unidade de sentido e em sua integridade.
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A defesa da PEC da Blindagem com base em uma leitura arqueológica do texto de 1988 não se sustenta. A cada emenda, o sistema constitucional se redefine, impondo novos limites ao poder de reforma. O constituinte derivado não pode restaurar mecanismos de blindagem simplesmente porque já existiram; deve demonstrar sua atual compatibilidade com os princípios intangíveis que estruturam a República.
Mais grave ainda: ao insistir em trazer de volta filtros políticos e votos secretos, a PEC se afasta da transparência democrática, incentiva a impunidade e fragiliza o equilíbrio entre Poderes. A Constituição não é um álibi para retrocessos, mas um compromisso normativo projetado para o futuro. Reintroduzir blindagens que a história já superou é trair não apenas o texto, mas o espírito republicano que deve orientá-la.