Quando os Poderes não conversam, quem sofre é o SUS

A saúde é a segunda maior preocupação para cerca de 40% dos brasileiros, ficando atrás apenas de “Crime e Violência”. É natural que essa percepção, de algum modo, acabe se refletindo em pressões sobre o Congresso Nacional, especialmente por meio de grupos organizados que buscam respostas para suas demandas. Mas até que ponto essas demandas se traduzem em propostas que melhoram o sistema de saúde como um todo? Em muitos casos, o que se vê é uma produção legislativa focada em resolver problemas pontuais, mas que acaba interferindo na lógica de funcionamento do SUS, com projetos que, por exemplo, propõem prioridade automática para determinados grupos, sem considerar os critérios técnicos de regulação do atendimento. Em vez de promover soluções duradouras, essas medidas isoladas costumam gerar efeitos colaterais indesejados, como a desorganização dos fluxos assistenciais e a ampliação das desigualdades.

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O levantamento Radar Político da Saúde – A Saúde no Congresso Nacional em 2024, lançado em agosto pelo Instituto de Estudos para Políticas de Saúde (IEPS), em parceria com a Umane, a Eixo Estratégia Política e o Infinis, analisou 1.314 proposições legislativas com conteúdo diretamente relacionado à saúde e identificou que 37% dos projetos de lei entram em conflito com políticas públicas já existentes ou apenas as duplicam. Entre os exemplos, há propostas que impõem novas obrigações ao SUS sem considerar os processos técnicos de pactuação ou avaliação de impacto, repetem portarias e resoluções do Ministério da Saúde sem levar em conta seu conteúdo ou estabelecem regras paralelas para os profissionais que atuam diretamente com os usuários do sistema. Essa atuação legislativa, em vez de fortalecer o SUS, acaba desorganizando ainda mais a rede pública de saúde.

Para gestores e trabalhadores do SUS em estados e municípios, a proliferação de normas paralelas dificulta a execução das políticas de saúde. Projetos que repetem normas já existentes, sem qualquer articulação com o Ministério da Saúde, confundem quem é responsável por aplicá-las, comprometendo a coerência do cuidado.

Para o sistema como um todo, os impactos vão além da redundância normativa. Propostas que  desconsideram a estrutura vigente fragilizam a governança, fragmentam recursos e prejudicam a gestão. É o caso das que impõem novas obrigações ao SUS, como a incorporação de medicamentos sem diálogo com instâncias técnicas, ou das que entram em conflito com modelos assistenciais, como os da Reforma Psiquiátrica e da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS).

Já do ponto de vista da população, as consequências se refletem em mais demora no atendimento, mais dificuldade de acesso e mais desigualdade. Quando perguntada sobre sua experiência com os serviços de saúde, a população tende a apontar problemas persistentes ligados à organização do sistema: longas filas, falta de exames e medicamentos, dificuldade para acessar  especialistas. Ou seja, a insatisfação está relacionada a questões que exigem mudanças estruturais, e não respostas legislativas fragmentadas.

Em vez de enfrentar esses gargalos, parte expressiva da atividade legislativa tem se concentrado em iniciativas de caráter simbólico: 14% dos projetos analisados pelo Radar têm como foco campanhas ou datas comemorativas, como o “Dia Nacional de Cuidados com as Mãos” ou o “Dia Nacional do Sono”.

Enquanto isso, propostas com potencial para fortalecer o SUS seguem à margem das prioridades do Congresso. É o caso do PL 1902/2021, que propõe uma estrutura normativa

para emergências em saúde pública e ainda tramita lentamente. Além disso, temas como a  judicialização da saúde, recentemente discutida no STF, também segue sem diretrizes legislativas, apesar de muitas vezes decorrer de leis que criam direitos sem considerar a capacidade do sistema de garanti-los, o que leva os cidadãos a recorrerem à Justiça para acessar serviços previstos em norma.

Outra lacuna crítica é a discussão sobre o orçamento público.  Nos últimos anos, o atraso e a negligência com a votação da Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) inviabiliza a contribuição do Congresso Nacional na elaboração da Lei Orçamentária Anual (LOA) que deve ser encaminhada pelo executivo até dia 31 de agosto. Ainda mais em um contexto que as emendas parlamentares, cujo volume triplicou entre 2015 e 2025 e hoje responde por 42% das despesas discricionárias do Ministério da Saúde. Apesar desse peso crescente no orçamento, ainda se sabe pouco sobre se esses recursos estão, de fato, contribuindo para a melhoria das políticas de saúde no país.

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A Constituição prevê a independência e a harmonia entre os Poderes. No campo da saúde, essa harmonia não pode ser apenas formal: precisa se traduzir em cooperação ativa. Avançar na construção de um sistema público de saúde mais justo, eficiente e responsivo depende de decisões baseadas em evidências e de um compromisso institucional com o fortalecimento do SUS.

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