A regulamentação da transação tributária, consagrada no art. 171 do Código Tributário Nacional, trouxe, no art. 4º, §4º, da Lei 13.988/2020, vedação expressa à realização de novo acordo de mesma natureza, pelo prazo de dois anos, por contribuintes com negociação rescindida anteriormente, ainda que relativa a débitos distintos.
Trata-se de mecanismo desestimulante da pretérita cultura de abandono de parcelamentos firmados após o adimplemento de algumas prestações e obtenção dos efeitos inaugurais positivos da regularização (sobrestamento das execuções, certidão positiva com efeitos de negativa, retirada do Cadin etc.).
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A nova sistemática de resolução de conflitos da Procuradoria Geral da Fazenda Nacional (PGFN) se alicerça numa metodologia multiportas de terminação de litígios, por intermédio da qual se afasta da tradicional e nem sempre adequada provocação do Judiciário, conferindo aos litigantes meios alternativos de resolução dos conflitos.
É na forja dessa tendência que a transação tributária de créditos se insere. Pensada como mecanismo de desconstrução dos usuais parcelamentos de outrora, os quais se transformaram em instrumentos contumazes de rolagem de dívida, cujos disciplinamentos não tomavam em consideração as particularidades da dívida ou do devedor, o novo instituto vem se consolidando como a principal política pública de recuperação de créditos da União, sendo responsável, só em 2025, por aproximadamente R$ 26 bilhões, dos R$ 60 bilhões arrecadados pela PGFN[1].
A transação aproxima a administração tributária das melhores práticas de compliance cooperativo, na medida em que busca estreitar a relação com o contribuinte, para compreender e elaborar um plano de regularização customizado às suas especificidades, permitindo o diálogo entre aqueles que, por tanto anos, estiveram sempre em lado opostos, como se inimigos fossem.
Como todo instrumento disruptivo de um contexto arraigado, a transação sofre naturais críticas, as quais devem ser, quando razoáveis, colhidas para o aperfeiçoamento do instituto.
De caráter ultranegocial (com efeitos prolongados para além da rescisão do acordo firmado), a vedação estabelecida no §4º do art. 4º da Lei 13.988/2020 tem por objetivo conferir uma maior densidade aos laços firmados entre as partes transacionantes. Ela visa transmitir a ideia de assertividade no trato negocial e da perene necessidade de conformidade, a fim de suplantar, de uma vez, os antigos comportamentos de aberturas de parcelamentos e da adesão pelos contribuintes para mera e temporária regularidade fiscal.
A transformação da antiga ordem em direção a um modelo de cooperação entre as partes exige a imposição de regras que impeçam o desvirtuamento do instituto como simples instrumento de regularização imediata da situação do devedor.
O impedimento em questão assume, portanto, a natureza de sanção administrativa, aplicada em razão da violação de compromisso assumido no bojo da transação com a União, assemelhando-se ao contexto da vedação de contratar com o poder público presente na Lei de Licitações e Contratos (vide Lei 14.133/2021 – arts. 14, III, 155 e 156, III, d), firmando-se, ao fim, como requisito negativo para transacionar, precedido de amplo contraditório[2].
Apesar das tentativas dos contribuintes de obter o reconhecimento judicial da ilegalidade da penalidade, o que parece ir de encontro a ideia de compliance, seja porque volta ao antigo modelo de cabo de guerra, seja porque fragiliza o instituto e seu aspecto negocial, é preciso compreender a necessidade de existência da sanção e pensar em situações em que esta poderia ser dirimida.
Justamente em razão do caráter sancionatório, o cômputo do impedimento deve ser integral, a partir da rescisão do acordo e implementação da restrição, sendo indiferente o prazo decorrido entre a consolidação das causas rescisórias e a formalização da rescisão.
Questão que aflora, entretanto, é até que ponto a redação do §4º do art. 4º da Lei 13.988/2020 inviabiliza outras negociações extremamente proveitosas para União, cuja condição de vantajosidade se apresente mais favorável ao poder público que a manutenção ferrenha do impedimento bienal em comento.
A explicitação dessa problemática não se direciona a uma releitura do fragmento multicitado da Lei 13.988/2020, atribuindo-se sentido e alcance incompatível com a redação atualmente posta, mas às eventuais e posteriores alterações legislativas e regulamentares da atual previsão.
Nesse cenário, será que a limitação de transacionar apenas de forma parcelada, mantendo-se a possibilidade de pagamento à vista com os benefícios da relação Capag X rating, não seria tão eficiente quanto a atual vedação bienal, mas com a vantagem de incrementar a arrecadação? Ou o condicionamento da transação à fiança bancária ou ao seguro garantia, mantendo-se os prazos e descontos máximos, não traria uma melhor relação x benefício?
Nas situações cuja utilização de créditos derivados de prejuízo fiscal e de base de cálculo negativa de CSLL é permitida, não se mostraria mais interessante afastar essa possibilidade por determinado período, mantendo-se os demais benefícios relativos aos prazos e aos descontos?
Uma gradação de sanções, segundo as peculiaridades das negociações, variando conforme a gravidade da causa rescisória, apresenta-se também como uma das soluções pertinentes à mitigação da sanção em análise. Aliás, sob esse prisma, a já mencionada Lei 14.133/2021, no seu art. 156, estabelece sanções com evidente gradação de severidade, variando, conforme o caso, entre a advertência, a multa, a vedação de contratar/licitar e a declaração de idoneidade, permitindo à administração sancionar sem, de pronto, inviabilizar a participação da parte interessada em novos certames ou contratos.
Tais exemplos são um pequeno fragmento de uma infinidade de situações nas quais claramente seria possível conciliar a elevação do grau de vantajosidade com o emprego de restrição ao espectro negocial, aliando a efetividade arrecadatória ao estímulo à conformidade.
É inegável o avanço nos mecanismos de resolução de controvérsias entre a administração tributária e o contribuinte em relação aos créditos tributários, e a importante virada de chave da antiga sistemática de parcelamento para um modelo de cooperação pautado no diálogo. No entanto, o instituto está apto a amadurecer para uma iminente redução do amargo remédio representado pelo impedimento bienal de transacionar, evitando-se que o bálsamo para os males do passado venha a prejudicar partes saudáveis do instituto.
Nesse contexto, impõe-se a abertura de discussão acerca das alternativas à atual redação do §4º do art. 4º da Lei 13.988/2020, sendo a gradação da intensidade das consequências rescisórias um caminho razoável a ser considerado, especialmente quando voltado ao incremento considerável da arrecadação, à significativa redução dos riscos do acordo e à regularização da situação fiscal do contribuinte.
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Este texto é fruto das discussões ocorridas no Núcleo do Mestrado Profissional da FGV Direito SP, na linha de pesquisa “Questões Contemporâneas do Contencioso Tributário”, em relação ao projeto “Reforma do Processo e seus Impactos na Reforma Tributária”
[1] O relatório “PGFN em números 2025” traz os resultados da transação no âmbito da União: https://www.gov.br/pgfn/pt-br/acesso-a-informacao/institucional/pgfn-em-numeros/pgfn_2025_1103_11h46_final.pdf
[2] ARAUJO, Juliana Furtado Costa; ROCHA, Mateus Ribeiro. Transação Tributária: por que um prazo de 2 anos para novo acordo por contribuinte inadimplentes?. Jota, 2025. Disponível em: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/pauta-fiscal/transacao-tributaria-por-que-um-prazo-de-2-anos-para-novo-acordo-por-contribuintes-inadimplentes