O artigo anterior tratou das inovações da Lei 14.903/2024 para o fomento cultural no Brasil, destacando a importância da transparência. Com o aumento de investimentos e a visibilidade pública do setor, surgem desafios significativos relacionados à integridade e à prevenção de ilícitos. Nesse cenário, o compliance anticorrupção torna-se um pilar fundamental para atuação no setor.
A dinâmica do setor cultural, que envolve múltiplos atores e recursos provenientes de, ou sem, incentivos fiscais, fundos públicos e patrocínios privados, exige cautela. Com o novo modelo de fomento da Lei 14.903/2024, a atenção aos riscos de fraude e corrupção é ainda mais crítica.
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Vulnerabilidades podem incluir riscos de superfaturamento; apresentação de informações falsas para obtenção de recursos, simulação de despesas ou manipulação de dados; movimentação de recursos financeiros que pode ser explorada para dissimular a origem ilícita e favorecimentos indevidos por conflito de interesses.
A materialização desses riscos pode acarretar perdas financeiras e reputacionais, devido a sanções adicionais às previstas na lei de fomento, como as sanções previstas na Lei Anticorrupção (Lei 12.846/2013). Ela permite a responsabilização objetiva de pessoas jurídicas por atos lesivos contra a administração pública, sem exigir comprovação de culpa ou dolo. No setor cultural, em que a interação com o poder público pode ser constante, a atenção a essa lei é indispensável.
A Lei Anticorrupção prevê atos lesivos que podem gerar responsabilização, tais como: oferecimento ou promessa de vantagem indevida a agente público ou a terceira pessoa e ele relacionada; financiar, custear, patrocinar ou, de qualquer modo, subvencionar a prática de atos ilícitos; utilizar-se de pessoa interposta para ocultar ou dissimular reais interesses ou a identidade dos beneficiários dos atos praticados; dificultar atividade de investigação ou fiscalização de órgãos público; além de fraudar contratos públicos.
Caso sejam provados quaisquer dos atos ilícitos, a pessoa jurídica poderá ser responsabilizada com multa no valor de 0,1% a 20% do faturamento bruto no último exercício anterior à instauração do processo administrativo, excluídos tributos e com publicação extraordinária da decisão condenatória. Além disso, a pessoa jurídica pode ser incluída no Cadastro Nacional de Empresas Punidas(CNEP), o que pode resultar em dificuldades de contratações futuras com a administração pública.
A relevância da Lei Anticorrupção no setor cultural é tangível. Casos recentes de responsabilização de entidades e indivíduos envolvidos em projetos culturais demonstram que práticas como desvio de recursos incentivados e fraudes em prestações de contas podem resultar em sanções administrativas, aplicadas por órgãos como o Ministério da Cultura e a Controladoria-Geral da União (CGU), com base justamente nos dispositivos da Lei Anticorrupção.
O Ministério da Cultura, por exemplo, já aplicou multas pela Lei Anticorrupção em pelo menos um Processo Administrativo de Responsabilização (PAR). No PAR identificado, com decisão publicada em dezembro de 2024[1], foi aplicada multa de mais de R$ 2 milhões. A íntegra dos autos do referido PAR não está publicamente disponível e, portanto, não foi possível identificar as condutas que foram penalizadas.
A CGU, por sua vez, já aplicou multa em, pelo menos, três PARs[2] envolvendo a Lei Rouanet (Lei 8.313/1991), que estabelece mecanismos para incentivo à cultura no Brasil, por incentivos fiscais. Os três PARs foram instaurados com base em operação da Política Federal. Segundo as apurações, empresas se beneficiavam da renúncia fiscal prevista na Lei Rouanet, deturpando seus objetivos ao direcionar recursos do Programa Nacional de Apoio à Cultura para a promoção de eventos corporativos ou privados em vez de atividades culturais legítimas.
A instauração dos PARs foi feita por provocação do Ministério da Cultura, que acionou o ministro da CGU, demonstrando a atuação ativa do Ministério da Cultura em temas relacionados. Esses exemplos reforçam a necessidade de vigilância constante e a implementação de mecanismos robustos de controle.
Diante desses riscos e da aplicação rigorosa da Lei Anticorrupção, um programa de compliance anticorrupção bem estruturado é relevante para qualquer entidade no setor cultural, principalmente em hipóteses de patrocínio ou financiamento de ações culturais. Ele não é mera formalidade, mas um conjunto de medidas para prevenir, detectar e remediar atos ilícitos, promovendo uma cultura de ética.
No final de 2024[3], a CGU publicou diretrizes para empresas privadas sobre programa de integridade. Por exemplo, em relação à integridade e governança corporativa, a CGU recomenda a adoção de instrumentos que possibilitem a supervisão de programa de integridade, bem como que a alta direção das empresas tenha conhecimento sobre temas envolvendo integridade, que possam promover e apoiar o programa.
A CGU também incentiva que as empresas implementem políticas, como Código de Ética, que sejam facilmente acessíveis aos colaboradores, prevendo regras sobre respeito, ética, ausência de tolerância à corrupção e a fraudes, entre outros. Também são recomendadas as práticas de treinamento e comunicação sobre o programa de integridade das empresas, além de monitoramento, gestão de riscos, bem como outras medidas.
Adotar essas práticas vai além de evitar multas: é um investimento em reputação. Entidades com compromisso genuíno com a integridade ganham a confiança de investidores, do público e dos órgãos de fomento, tornando-se mais atrativas e resilientes.
O compliance é um diferencial estratégico competitivo que protege o valor da marca e assegura a sustentabilidade das atividades culturais. Além da reputação, a CGU mencionou em suas diretrizes que práticas de integridade também contribuem para oportunidades comerciais, redução de custos por fraudes e atração de empregados que prezam por integridade e ética.
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Portanto, a Lei 14.903/2024 marca um novo capítulo para o fomento cultural no Brasil, exigindo de empresas e agentes culturais uma postura proativa em relação à transparência e à integridade. Com novos fluxos de recursos, a adequação a práticas de boa governança e compliance é um diferencial estratégico que garante segurança jurídica, otimiza investimentos e fortalece a reputação no setor.
Este artigo buscou oferecer um panorama da importância do compliance anticorrupção para o setor cultural. Os próximos textos desta série tratarão das perspectivas do direito concorrencial.
[1] https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/decisao-n-12-de-20-de-dezembro-de-2024-603845965
[2] PARs nºs 00190.101806/2017-81, 00190.109824/2019-72 e 00190.103466/2020-28.
[3] https://www.gov.br/cgu/pt-br/assuntos/noticias/2024/10/cgu-publica-novo-guia-de-diretrizes-para-empresas-privadas/GuiaDiretrizes_v14out1.pdf