Já é um truísmo afirmar que o mundo contemporâneo é marcado pelas novas tecnologias, pela inteligência artificial e pela mineração, utilização e armazenamento de dados em larga escala. Nesse contexto, também a Administração Pública cada vez mais vem se utilizando de ferramentas de Tecnologia da Informação e Comunicação (TIC) para realizar suas atividades meio e fim.
Ocorre que o Estado brasileiro, naturalmente, não é capaz de desenvolver e aplicar todas as soluções de tecnologia e segurança da informação que utiliza, por meio de seus próprios agentes públicos e servidores. Isso torna inevitável a contratação de parceiros externos para que essas soluções sejam desenhadas e/ou implantadas, de acordo com o interesse público.[1]
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Em primeiro lugar, observa-se que preocupações com contratações na área de TIC já estão presentes dentro da Lei 14.133/2021, inclusive com a criação de uma nova modalidade de licitação vocacionada à área de tecnologia – o diálogo competitivo.
No âmbito do executivo federal, que é o principal objeto deste artigo, editou-se a Instrução Normativa SGD/ME 94, de 23 de dezembro de 2022, que disciplina, naquela esfera, as contratações de soluções de TIC pelos órgãos e entidades integrantes do Sistema de Administração dos Recursos de Tecnologia da Informação (Sisp)[2].
Essa IN define soluções de TIC no seu art. 2º, VII, como o “conjunto de bens e/ou serviços que apoiam processos de negócio mediante a conjugação de recursos de TIC”, de acordo com as premissas definidas em um de seus anexos, além de diversas portarias da SGD/MGI para assuntos específicos.
Já se tem mapeados, nos âmbitos federal, estadual, municipal e distrital, centenas de licitações e contratações, cujos objetos são da área de TIC, envolvendo produtos e serviços diversos, como serviços especializados, treinamento, suporte, software, hardware e infraestrutura. Diante desse quadro, o mercado de contratações públicas pode ser atrativo para diversas empresas e organizações que trabalham com ferramentas e soluções de TIC – ainda que esses players ainda não tenham o hábito de contratar com o poder público.
E uma das primeiras indagações que surge dentro de toda organização que trabalha com soluções de TIC e que decide contratar com o poder público, é a seguinte: como minha solução sempre é única, posso fazer uma contratação direta, sem licitação?
A resposta não é fácil. Isso porque nem toda solução de TIC é tão única que não possa ser licitada e nem todas as situações de emergência e/ou especificidade vêm atraindo contratações diretas, com base nas orientações do TCU e da jurisprudência.
É necessário, primeiramente, fixar a premissa de que a jurisprudência do TCU[3] há anos já vem considerando os serviços e soluções de TIC como serviços comuns, que devem, como regra, ser objeto de licitação, que ocorrerá, normalmente, pela modalidade pregão e espécie pregão eletrônico[4]. Fixada essa premissa, sendo a contratação direta uma exceção, pode-se analisar os casos em que poderá haver a contratação direta, seja por licitação dispensável ou por inexigibilidade[5].
Quanto à licitação dispensável, para as soluções de TIC desenvolvidas por organizações que não sejam estatais, de ICT pública ou agência de fomento, isto é, as fornecidas pelos agentes do mercado privado em geral, destacam-se as hipóteses dos incisos II, VI e VIII do art. 75 da Lei 14.133/2021.
Sobre a hipótese do art. 75, II, da Lei 14.133/2021, que trata da dispensa por pequeno valor, a IN SGD/ME 94/2022 determina que as contratações diretas nesse caso continuam a ser reguladas pela IN SEGES/ME 67, de 8 de julho de 2021, que estabelece o sistema de dispensa eletrônica, sendo a aplicação da IN SGD/ME 94/2022 facultativa[6].
O valor das dispensas por pequeno valor hoje, para as soluções de TIC perfaz, em regra, R$ 62.725,59 ou o dobro desse valor no caso de contratações por consórcios públicos e agências executivas (v. Decreto 12.343/2024). No caso de diversos softwares de prateleira e diversas licenças e soluções mais simples, além de várias soluções contratadas por entes, órgãos e entidades de menor porte, é comum a dispensa com base no pequeno valor sem maiores problemas.
Sobre a hipótese do inciso VI, tem-se caso em que a publicidade de uma licitação pode comprometer a segurança nacional, de modo que a necessidade de tratamento sigiloso é a razão para o afastamento da regra de licitar. Além da previsão do caso pelo ministro da Defesa, a hipótese de comprometimento da segurança nacional deve estar configurada no caso concreto, sendo expressamente justificada pelos responsáveis pela contratação e, mesmo assim, com devida pesquisa e justificativa dos preços praticados na contratação, conforme o TCU decidiu no Acórdão 2.994/2009-Plenário, à luz do dispositivo correspondente na Lei 8.666/1999 (art. 24, IX).
Já a hipótese do art. 75, VIII, da Lei 14.133/2021, da contratação emergencial, demanda análises de casos que já tramitaram perante o TCU.
Uma das principais preocupações da IN SGD/ME 94/2022, assim como do TCU, refere-se à fase de planejamento da contratação e, sobretudo, de realização de estudos técnicos preliminares e termos de referência dentro dessa fase. Há, inclusive, previsão expressa no art. 9º, § 1º, da IN SGD/ME 94/2022 de que é obrigatória a execução de todas as etapas da fase de planejamento da contratação, mesmo nos casos de contratações diretas.
Como o pressuposto da dispensa de licitação é a necessidade de celebração do contrato de modo imediato, sob pena de prejuízo ao interesse público, o ponto nevrálgico é a articulação entre o tempo e o planejamento. A caracterização da situação emergencial depende de juízo próprio da Administração. Entretanto, uma situação de emergência não pode ser gerada pela falta ou falha no planejamento da contratação.
Em 2020, o TCU julgou caso referente a uma contratação na área da segurança da informação pelo Serpro, em que se fixou algumas premissas a serem observadas para o caso de contratações emergenciais em TIC (Acórdão 1919/2020-Plenário)[7].
No caso concreto, teria ocorrido um incidente no Sistema Pucomex DU-E; essa falha teria sido resolvida pelo corpo técnico da estatal a partir da instalação de uma sala de crise; esse fato teria alertado a empresa sobre possíveis falhas de magnitude similar ou maior em processos críticos; dez sistemas teriam sido eleitos para serem objeto de intervenção por serem os mais suscetíveis a gerar alto impacto em caso de erros; e, por isso, teria sido caracterizada a situação de emergência para a contratação de consultoria especializada a fornecer a orientação para que os eventuais riscos constatados fossem eliminados.
O TCU, porém, considerou que nesse caso específico não haveria a alegada urgência de forma a atrair a contratação emergencial.
Primeiramente, para que se admita a dispensa com base em situação de emergência, seria imprescindível haver a necessidade de interferência urgente para evitar ou prevenir evento iminente e desastroso nos sistemas, com evidente e elevado impacto para a entidade, cuja não intervenção imediata acarrete risco muito elevado. Tratando-se, no caso concreto, de serviço de consultoria exploratório (de investigação de riscos e vulnerabilidades), incerto e preventivo, visando a melhoria de processos, via de regra, não haveria uma situação de emergência.
Outra regra que se pode extrair desse julgado é a de que é imprescindível que a intervenção seja extraordinária e específica, fugindo à manutenção cotidiana, e que a intervenção do contratado deve ser necessária para se resolver o problema identificado como crítico pela administração – não sendo possível que o escopo da intervenção seja amplo ou genérico, com natureza de consultoria, por exemplo.
Ademais, mesmo na dispensa emergencial, é necessário que o preço proposto efetivamente corresponda ao usual do mercado, mostrando-se de acordo com os valores normalmente cobrados pela própria empresa e também proporcional aos praticados no mercado em geral.
Destaca-se que existem diferentes entendimentos quanto à validade de contrato emergencial em decorrência da falha, desídia ou inércia administrativa. O TCU já entendeu que, a par da irregularidade praticada pelo gestor, que deve ser punida, o contrato deve ser considerado válido, uma vez que “não se distingue a emergência real, resultante do imprevisível, daquela resultante da incúria ou inércia administrativa” (por todos, Acórdão 1.876/2007-Plenário).
Isto é, para o TCU, quem deve ser punido é o gestor e não o contratado e a coletividade. O Superior Tribunal de Justiça, por outro lado, já registrou entendimento pela própria nulidade do contrato, sendo a empresa prestadora de serviço condenada a ressarcir o prejuízo observado pelo erário (REsp 1.760.128/SP, relator ministro Herman Benjamin).
Tem-se, por fim, as situações que poderiam autorizar a contratação direta por inexigibilidade de licitação. A inexigibilidade, como se sabe, se refere às situações em que a competição é inviável, seja por exclusividade do fornecedor, seja por situações em que as características do serviço ou da equipe que os desenvolve ou fornece tornem a solução única no mercado, impossibilitando que outros players ofereçam solução similar. Vale registrar que o art. 74, §1º, da Lei 14.133/2021 determina que é vedada a preferência por marca específica.
Sob a égide da Lei 8.666/1993, o TCU fixou o entendimento de que a inexigibilidade para serviços de informática só seria admitida para serviços profissionais especializados ou para manutenção de sistema ou software em que o prestador do serviço detenha os direitos de propriedade intelectual, situação esta que deveria estar devidamente comprovada (Acórdão 2094/2004-Plenário).
Entretanto, é de se registrar que se vem considerando que as soluções de TIC devem ser implantadas na Administração de forma que esta detenha domínio tecnológico sobre os produtos gerados, sem que se gere uma dependência do contratado (Acórdão 2.476/2007-Plenário).
O TCU também sob a égide da Lei 8.666/1993 fixou o entendimento de que, em soluções de TIC, o certificado oferecido pelo próprio fabricante não é instrumento hábil para comprovar a condição de exclusividade (Acórdão 3659/2007-Primeira Câmara). Esse entendimento, no entanto, deve se entender por superado, tendo em vista que a Lei 14.133/2021 determina em seu art. 74, § 1º, serem aceitos “atestado de exclusividade, contrato de exclusividade, declaração do fabricante ou outro documento idôneo capaz de comprovar que o objeto é fornecido ou prestado por produtor, empresa ou representante comercial exclusivos”.
Já o Tribunal de Contas do Distrito Federal (TCDF), por exemplo, nos autos do Processo 00600-00009711/2022-95-e, já reconheceu irregularidade do termo de referência e o do edital de licitação da área de TIC, que teria direcionado o objeto da contratação a produtos/soluções de determinada fabricante. Isso indica também que, no caso de uma contratação direta por inexigibilidade, não poderia haver, no Termo de Referência, a restrição do objeto e dos requisitos e parâmetros da solução tais que apenas uma empresa possa prestar o serviço. O recomendável é que se admita diversas soluções com engenharia diferente para o mesmo escopo e que qualquer tipo de especificidade ou exclusividade deva ser justificada.[8]
Por fim, é interessante observar que os próprios órgãos de controle, na prática, já realizam para si contratações na área de TIC por inexigibilidade.
O Tribunal de Contas do Estado do Rio Grande do Sul (TCE-RS), por exemplo, contratou por inexigibilidade a subscrição anual de licenças de um software específico de anti-ransomware, serviço de teste de invasão (pentest) e serviços de suporte (Inexigibilidade de Licitação 26/2023). Segundo o TCE-RS, a solução contratada seria a única atender às demandas da corte, considerando, principalmente, o cenário após a ocorrência de prévio ataque cibernético aos sistemas do tribunal.
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Já o Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios contratou garantia e suporte técnico on-site do fabricante para servidor de modelo específico, uma vez que tal suporte seria comercializado com exclusividade por determinada empresa brasileira, conforme atestado, sendo inviável a competição (Contrato 00119/2023).
Como se vê, são muitos os fatores a serem levados em consideração para uma contratação direta na área de TIC. Os entendimentos acima, assim como a normativa aplicável e as especificidades do caso concreto, devem ser considerados.
Logicamente, como cada solução de TIC é, à sua maneira, única e complexa e como cada situação crítica demanda soluções específicas, em tempos específicos, as hipóteses de contratações diretas com a Administração devem ser analisadas caso a caso.
[1] A Secretaria de Governo Digital (SGD) do Ministério da Gestão e da Inovação em Serviços Públicos (MGI) analisou 39 processos de contratações acima de R$ 20 milhões apenas referentes ao ano de 2023, que somados alcançaram R$ 4,6 bilhões, como se pode ver em: https://www.gov.br/gestao/pt-br/assuntos/noticias/2024/agosto/avaliacao-de-contratacoes-publicas-de-ti-pelo-ministerio-da-gestao-gera-economia-de-r-37-milhoes. Segundo um estudo realizado por pesquisadores da USP, da UnB e da FGV, desde 2014, o Brasil já teria gastado mais de R$ 23 bilhões em licenças de software, cloud e segurança de empresas como Google, Microsoft e Oracle, tendo sido gastos mais de R$ 17 bilhões em licenças, serviços de hospedagem em nuvem e segurança digital no período de dois anos e meio anteriores ao estudo, e, no último ano antes do estudo (de junho de 2024 a junho de 2025), sido gastos R$ 10 bilhões, sendo R$ 4,6 bilhões pagos pelo governo federal, e o restante, por estados e prefeituras. Sobre o estudo, ver: https://www.intercept.com.br/2025/07/08/brasil-torrou-10-bilhoes-em-um-ano-com-bigtechs/.
[2] Tem-se ainda a Instrução Normativa SGD/MGI nº 6, de 29 de março de 2023, que regulamenta os requisitos e procedimentos para aprovação de contratações ou de formação de atas de registro de preços, relativos a bens e serviços de tecnologia da informação e comunicação – TIC.
[3] Tribunal de Contas da União (TCU) – Acórdão 1919/2020-Plenário.
[4] Seguindo essa orientação já consolidada, o art. 25, parágrafo único, da IN SGD/ME nº 94/2022 determina ser obrigatória a utilização da modalidade pregão nas contratações de TIC do executivo federal, quando a solução se enquadrar como bem ou serviço comum, podendo-se, nos outros casos, utilizar o diálogo competitivo previsto nos arts. 28 e 32 da Lei nº 14.133/2021, desde que devidamente justificado nos autos.
[5] A licitação dispensada não se aplica às soluções de TIC.
[6] Exceto quanto à programação estratégica da contratação e a correção monetária pelo ICTI/IPEA.
[7] O objeto da contratação era um serviço de avaliação de processos e tecnologia, arquitetura, ferramentas e segurança da informação (Contrato 73.353/2020). A dispensa se baseou no art. 29, XV, da Lei 13.303/2016, que dispõe sobre a contratação emergencial de forma semelhante ao art. 75, VIII, da Lei nº 14.133/2021.
[8] Aliás, o TCU já se manifestou no sentido de que é “irregular a aquisição de serviços de informática (suporte, apoio técnico e treinamento), junto com a compra do software, por inexigibilidade de licitação, quando ficar provada a viabilidade de execução destes serviços por mais de uma empresa” (Acórdão 550/2004-Plenário).