Os olhos invisíveis no teletrabalho: eficiência ou vigilância abusiva?

A notícia de que o banco Itaú teria dispensado cerca de mil trabalhadores devido ao monitoramento digital no teletrabalho, realizado, segundo o sindicato dos trabalhadores, de forma secreta quanto ao seu uso e regras, gerou inúmeros e (como sói acontecer) acalorados debates nas redes sociais.

Quando o silêncio do teclado vira dispensa em massa de trabalhadores, ganha força o debate imprescindível em tempos digitais da legalidade, legitimidade, amplitude e limites do monitoramento digital do trabalho.

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Devemos deixar um alerta de início: um tema atual e complexo não permite soluções (nem posições) binárias. Na lógica das redes sociais, o desejo de “lacrar” se tornou mais importante do que o de compreender, reduz-se um debate intrincado a frases de efeitos ou a uma única resposta correta. A realidade, porém, escapa dessa moldura limitadora.

O avanço tecnológico, com a utilização massiva de dispositivos e ferramentas digitais no trabalho (e no cotidiano de todos) e uma capacidade quase infinita de coleta, armazenamento e processamento de dados e informações, tem permitido a transformação do poder diretivo e intensificado as possibilidades de controle e monitoramento do trabalho – e do comportamento do trabalhador –, em termos quantitativos e qualitativos, alcançando níveis nunca antes vistos.

Em alguns casos, colidindo frontalmente com diretos fundamentais das trabalhadoras e trabalhadores como a dignidade, intimidade, privacidade e proteção de dados.

Se por um lado a vigilância está inserida no poder empregatício, ela não pode ser realizada de forma a transmutar-se em abuso de direito. O acentuado grau de monitoramento e vigilância ostensiva (ou mesmo oculta, como por vezes acontece e que foi denunciado no caso do Itaú) das atividades – e até mesmo dos próprios trabalhadores –, facilitados pela incessante oferta de novos produtos digitais, inclusive com o desenvolvimento da inteligência artificial, constitui um dos principais desafios das regulamentações trabalhistas modernas, independentemente da modalidade de trabalho, se presencial ou à distância, devido ao potencial lesivo aos direitos fundamentais dos trabalhadores como privacidade, intimidade, dignidade e saúde mental dos trabalhadores.

Nesse sentido, experimentam-se alguns avanços regulatórios no sentido de esclarecer os limites do monitoramento digital de trabalhadores, especialmente a partir da legislação europeia mais recente, como o Regulamento Geral de Proteção de Dados (Regulamento UE 2016/679), o Regulamento da Inteligência Artificial (Regulamento UE 2024/1689) e a Diretiva sobre Plataformas Digitais (Diretiva UE 2024/2831).

Esta, por exemplo, ao resguardar a saúde física e mental dos trabalhadores em plataformas digitais (art. 12), vedou expressamente que sistemas automatizados – de monitoramento e de tomada de decisão – possam exercer pressão indevida sobre os trabalhadores.

O Regulamento da Inteligência Artificial, classificado pela União Europeia como a primeira lei mundial sobre o tema, busca garantir o desenvolvimento e uso de sistemas de IA de forma segura, ética e com respeito aos direitos fundamentais dos cidadãos, inclusive no contexto das relações do trabalho.

A Norma classifica como risco elevado o uso de IA em processos de seleção e recrutamento, nas avaliações de performances, na monitorização e na tomada de decisões relacionadas ao emprego, além de proibir ferramentas de reconhecimento emocional no ambiente de trabalho.

Na Espanha, foi editada uma lei específica sobre o trabalho à distância (Ley 10/2021, de 9 de julio), que disciplinou as faculdades empresariais a partir de três aspectos: a proteção de dados e segurança das informações (art. 20); as condições e instruções de uso de equipamentos de informática (art. 21); e as medidas de vigilância e controle do trabalho (art. 22). Além disso, há uma lei geral de proteção de dados (Ley Orgánica 3/2018, de 5 de diciembre), com artigos dedicados à proteção da intimidade e de dados no âmbito laboral (arts. 87 a 91).

Uma das premissas da legislação espanhola consiste no dever do empregador de ser claro e informar previamente os trabalhadores a respeito da política e regras estabelecidas para o uso de dispositivos e ferramentas digitais[1]. No mesmo sentido, o Acordo Marco Europeu sobre Teletrabalho estabeleceu o dever do empregador de informar ao trabalhador “cualquier limitación em la utilización del equipo o de herramientas informáticas tales como internet”.

Um dos pontos de preocupação regulatória europeia é a necessidade de transparência em relação aos meios e conteúdos monitorados e para qual finalidade, examinados sob a perspectiva do juízo de proporcionalidade.

Quer dizer, se há idoneidade (a medida é capaz de atingir o objetivo proposto), necessidade (não existe outra medida menos lesiva para atingir o mesmo objetivo, com igual eficácia) e proporcionalidade em sentido estrito (a conduta reflita mais benefícios do que prejuízos na ponderação entre os bens jurídicos envolvidos), além da impossibilidade de desvio de finalidade (em verdade o controle estar sendo utilizado para alcançar outro fim, como a necessidade ou interesse na redução de pessoal ou mudança de forma contratual –“fire and rehire”).

Para tanto, é imprescindível o prévio conhecimento, pelos trabalhadores e por suas representações, de eventuais sistemas de vigilância adotados ou limitações no uso de dispositivos digitais[2], devendo ser especificados os comportamentos proibidos ou que contenham restrições, a forma como será realizado o monitoramento e as consequências de eventual descumprimento ou uso indevido.

O consentimento, aspecto essencial da proteção de dados, precisa ser adaptado ao contexto das relações de trabalho. Em uma relação desigual e assimétrica, por adesão e marcada pela necessidade, o mero consentimento constitui um expediente frágil, o que reforça a transparência, em especial os deveres de informação e de comunicação dos meios utilizados, individual e coletivamente, de modo a permitir uma adequada fiscalização, capaz de conter abusos e excessos praticados.

A legislação brasileira sobre teletrabalho (capítulo II-A da CLT) e sobre proteção de dados não disciplina especificamente sobre as condições de uso dos dispositivos e ferramentas digitais no trabalho ou sobre medidas de vigilância e controle digital, como feito pelas normas estrangeiras antes mencionadas.

Um silêncio que não importa em validação de qualquer conduta, já que as medidas adotadas encontram limites na preservação do direito à intimidade, garantido constitucionalmente (art. 5º, X e §1º), bem como nas normas celetistas que disciplinam o poder diretivo. Afinal, o poder diretivo do empregador continua o mesmo em sua essência, com um ajuste na forma de manifestação, agora por meios digitais.

Portanto, as ferramentas digitais utilizadas para o controle da atividade laboral – e apenas para esta finalidade – precisam ser legitimadas e justificadas sob a ótica da proporcionalidade, da boa-fé e da ética digital, além de previamente informadas ao trabalhador. Conjugam-se parâmetros gerais de validação do uso das ferramentas digitais, utilizando-se de vetores como a motivação, proporcionalidade e transparência, de acordo com as circunstâncias de cada caso, sopesando também outros fatores como o tipo de atividade econômica, a função exercida, a intensidade do uso da tecnologia, o local de trabalho etc.

De modo geral, o controle empresarial do teletrabalho por meios digitais, independentemente do instrumento utilizado, demanda prudência, sensatez e ponderação.

Cada desafio imposto pelo incremento do poder empregatício com a utilização de avanços tecnológicos aponta a necessidade de atualização do olhar da regulação. A reforma trabalhista de 2017, que (supostamente) seria uma modernização da legislação, absolutamente nada aportou sobre os temas aqui trazidos, não passando de mero argumento retórico.

As mudanças na CLT sobre o teletrabalho foram desprovidas de qualquer coerência ou técnica: apenas cinco artigos, amparados em uma concepção antiga (e pré-pandêmica) do teletrabalho como regime extraordinário e pautado na negociação individual, refletindo um enorme silêncio e muitas dificuldades para aqueles que enfrentam diariamente os principais gargalos dessa modalidade laboral.

Em alteração no ano de 2022, reduz-se parcialmente a distância com a realidade, negando o regime de jornada de trabalho somente para os trabalhadores por produção ou tarefa, que não teriam controle de tempo pelo empregador, no entanto finge desconhecer as capacidades de vigilância das novas tecnologias. Claro que, por consequência lógica, somente se pode permitir monitoramento digital de teletrabalhador controlado por tempo, e não por produção ou tarefa.

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A parca e torta regulação especifica que temos nos tem remetido à aplicação das normas ordinárias trabalhistas sobre poder diretivo e controle empresarial e, principalmente, à aplicação dos fundamentos e diretrizes constitucionais de proteção de dados, da intimidade, da privacidade e da dignidade da pessoa humana (artigos 1º, inciso III, e 5º, inciso X), impondo aos juristas brasileiros uma habilidade ímpar, além de um profundo senso de justiça, para adotar soluções equânimes e razoáveis.

O cenário, por si só, é complexo, multifacetado e desafiador. Precisamos de um debate sério e aprofundado e de atualizações legais inteligentes e íntegras para dar conta do fenômeno aparentemente imparável da digitalização do trabalho. Uma ideia é tomar como parâmetro os avanços regulatórios europeus. Mãos à obra!

[1] art. 17 da Ley 10/2021 e art. 87 da Ley Orgánica 3/2018.

[2] vide art. 5º do Acordo Marco Europeu sobre Teletrabalho; art. 64, apartados 5 e 6, do Estatuto do trabalhador espanhol; arts. 7º e 22 da Lei espanhola de trabalho à distância; e arts. 87, 89 e 90 da Lei espanhola de proteção de dados.

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