Nos últimos anos, a reforma regulatória implementada pela Lei Geral das Agências e pela Lei de Liberdade Econômica impôs novos padrões de qualidade aos órgãos reguladores. Recaem sobre os processos decisórios desses órgãos exigências de realização de Análises de Impacto Regulatório (AIRs), de promoção de consultas públicas bem estruturadas, de desenho e cumprimento de agendas regulatórias e de uso de avaliações ex post das intervenções regulatórias.
Exige-se que não apenas os regimes regulatórios, mas também as práticas de governança desses órgãos sejam compatíveis com elevados padrões internacionais. Essas rotinas não são meras formalidades processuais: destinam-se a elevar o nível técnico das decisões, a tornar a atuação regulatória mais previsível e a ampliar a transparência e a accountability dos reguladores perante a sociedade.
Conheça o JOTA PRO Poder, plataforma de monitoramento que oferece transparência e previsibilidade para empresas
No entanto, implementar AIRs rigorosas, sistematizar a participação social e manter cronogramas de regulamentação exige o emprego de metodologias, recursos e tempo — não apenas boas intenções. É preciso produzir evidências e modelar efeitos econômicos para estimar custos e benefícios esperados de maneira clara.
É necessário manter uma interlocução contínua com agentes econômicos, órgãos de controle e outras esferas do Estado. Em outras palavras, os órgãos reguladores vêm sendo instados a assumir novas responsabilidades e, para tanto, devem investir em capacidades analíticas e processuais que transformem o ideal de uma regulação “baseada em evidências” em práticas efetivas.
Concretamente, porém, todas essas exigências repousam sobre uma pré-condição decisiva: a disponibilidade de uma força de trabalho adequada a ser empregada pelas agências. A capacidade de conduzir estudos técnicos, de construir propostas normativas robustas e de prestar contas à sociedade depende diretamente de profissionais especializados — economistas, advogados, engenheiros, estatísticos e demais servidores com a formação e experiência necessárias.
Sem esses recursos humanos, as ferramentas formais de qualidade da regulação não adquirem vida. Por isso, embora se discuta com frequência marcos institucionais e garantias legais de independência, é pela disponibilidade e pela qualificação do pessoal que a independência técnica dos órgãos reguladores efetivamente se materializa.
Mais obrigações, menos recursos
Mas, infelizmente, as exigências crescentes de qualidade regulatória chegaram num momento em que as agências enfrentam uma compressão persistente de seus recursos orçamentários. É o que mostram os dados reunidos pela pesquisa intitulada “Recursos em Queda, Obrigações em Alta: A Sustentabilidade da Força de Trabalho nas Agências Reguladoras”, desenvolvida pelo projeto Regulação em Números, da FGV Direito Rio. A pesquisa reuniu dados de orçamento e da força de trabalho das 11 agências reguladoras federais independentes previstas no art. 2º da Lei 13.848/2019.
Em relação aos dados orçamentários, a pesquisa mostra que, entre 2015 e 2024, as despesas autorizadas das agências caíram de R$ 8,6 bilhões para R$ 5 bilhões — uma redução de 41,9%, equivalente a R$ 3,6 bilhões. No mesmo período, as despesas executadas passaram de R$ 7 bilhões para R$ 4,9 bilhões, queda de 29,7% (R$ 2,1 bilhões). Entre elas, as discricionárias recuaram 40,6% (de R$ 2,6 bilhões para R$ 1,6 bilhão), enquanto as obrigatórias diminuíram 22,7% (de R$ 4,4 bilhões para R$ 3,4 bilhões)[1].
Não é surpresa, portanto, que essa retração orçamentária se tenha refletido no quadro de pessoal: o efetivo total das agências caiu cerca de 15% no período, passando de 11.175 para 9.483 servidores. Essa queda é generalizada, apenas ANA (+24%) e ANP (+5%) ampliaram efetivos, enquanto outros órgãos sofreram contrações acentuadas, como a ANM (–33%) e a Anvisa (–26%). O gráfico a seguir mostra a queda orçamentária e da força de trabalho, de todas as agências reguladoras federais independentes, no período.
O mecanismo por trás dessa evolução é claro nas séries históricas analisadas: salários e encargos têm pouca flexibilidade no curto prazo, de modo que, mesmo com a redução dos gastos com pessoal da ativa (23,1%), a participação do gasto com pessoal nas despesas totais aumentou.
Na comparação entre 2015 e 2024, a fatia do orçamento comprometida com as despesas de pessoal (excluídas as aposentadorias) passou de 42,5% para 46,6% do total, reduzindo a margem discricionária das agências para financiar atividades “não obrigatórias” — incluindo aquelas que podem estar associadas ao cumprimento das novas obrigações decorrentes da reforma regulatória, como mencionado.
Some-se a isso o fato de que o número de cargos do quadro de pessoal das agências é disciplinado por leis editadas há mais de 20 anos[2]. Há uma clara defasagem no número de vagas que podem ser preenchidas em agências reguladoras, o qual certamente não tem acompanhado a ampliação das atribuições das agências.
Com efeito, os dados evidenciam sinais de que a combinação de orçamento em queda e restrições de pessoal já tem efeitos operacionais concretos: aumentou a taxa de vagas não preenchidas nos órgãos reguladores. A vacância passou de cerca de 21% em 2015 para cerca de 28% em 2024, com pico de 28,9% em 2023.
A pesquisa da FGV destacou ainda um efeito distributivo e heterogêneo entre agências que merece atenção: em alguns órgãos, a queda do orçamento acompanhou proporcionalmente a redução de pessoal; em outros, a redução orçamentária foi muito mais intensa do que a correção do quadro de servidores, o que elevou substancialmente o peso da folha de pagamentos no gasto total.
Casos emblemáticos são ANP, ANTT e Ancine — na ANP, por exemplo, o quadro cresceu ligeiramente enquanto as despesas totais recuaram fortemente (−44%), produzindo uma sobrecarga orçamentária sobre os gastos com pessoal. Essa heterogeneidade parece sinalizar que as estratégias de gestão dos órgãos reguladores têm sido variadas e que os riscos à capacidade técnica não são uniformes, mas sim dependentes de fatores institucionais e setoriais.
Não há independência técnica sem recursos
As implicações da pesquisa conduzida pela FGV são diretas e preocupantes: a compressão orçamentária pode funcionar, na prática, como um mecanismo informal de controle político sobre a autonomia técnica das agências para desempenhar suas funções. Isso restringe sua autonomia para repor quadros, financiar estudos, contratar consultorias especializadas ou operacionalizar processos participativos.
Assine gratuitamente a newsletter Últimas Notícias do JOTA e receba as principais notícias jurídicas e políticas do dia no seu email
Quando gestores são forçados a priorizar despesas obrigatórias ou a postergar reposições, perde-se não apenas volume de trabalho, mas conhecimento acumulado e capacidade analítica — o que fragiliza a qualidade das decisões, amplia o risco de escolhas menos baseadas em evidência. No cenário atual mesmo as funções básicas das agências também podem ser afetadas: reguladores podem se ver forçados a adiar ações de fiscalização essenciais. Esse cenário agrava desigualdades entre agências e setores e restringe a política regulatória a soluções reativas e de curto prazo, em vez de permitir planejamento e regulação preventiva.
Os dados levantados mostram que, a despeito de as responsabilidades dos órgãos reguladores terem aumentado ao longo do tempo, seus recursos estão se tornando cada vez mais cada vez mais escassos. Se persistir, esse processo pode comprometer importantes fundamentos do atual Estado regulador brasileiro.
[1] Todos os dados estão em moeda de 2024, ajustados pelo IPCA.
[2] Dentre as principais leis editadas nos idos dos anos 2000 destacam-se a Lei nº 10.768/2003 (quadro pessoal da ANA), a Lei n. 10.871/04 (quadro de pessoal de todas as agências, exceto Anac e ANM), e a Lei n. 10.882/2004 (quadro de pessoal da Anvisa). A última atualização sistemática desse quadro de pessoal se deu em 2013, com a edição da Lei n. 12.823.