No processo de redemocratização do país, a Constituição de 1988 marcou o fim de uma era de silêncio e exclusão, reconhecendo a saúde como conquista popular e compromisso inadiável do Estado democrático de Direito. Dois anos depois, em 19 de setembro de 1990, a Lei 8.080 regulamentou esse pacto, organizando o Sistema Único de Saúde (SUS). Desde então, o SUS se afirma como um dos maiores patrimônios da democracia brasileira.
O SUS nasceu para afirmar que saúde não é mercadoria, mas sim direito. Mais do que assistência médico-hospitalar, é um sistema de proteção e vigilância em saúde. Sua lógica é simples: cuidar é, antes de tudo, prevenir, controlar riscos e proteger a vida em todas as suas dimensões — nos alimentos que comemos, nas roupas que vestimos, nos medicamentos e dispositivos de saúde que utilizamos, nos serviços e nos ambientes que frequentamos.
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Nesse arranjo, a Anvisa ocupa lugar central. Guardiã da saúde pública, atua para prevenir riscos de adoecimento, assegurando qualidade e segurança. Faz isso ao regular o setor da saúde e cadeias produtivas que representam quase um quarto do PIB nacional, ao fiscalizar serviços e insumos e ao exercer o controle sanitário em portos, aeroportos e fronteiras. Assim, protege a vida enquanto assegura que a economia siga em movimento, sem abrir mão da saúde coletiva.
A pandemia de Covid-19 revelou a força e o limite dessas instituições. Quando a Anvisa aprovou as vacinas, sob ataques e pressões, foram seus servidores e servidoras que mostraram que ainda havia quem defendesse a vida dentro do Estado. Ali ficou claro que a ciência resistia ao negacionismo; o SUS vencia o medo.
Ainda assim, mais de 700 mil brasileiros morreram. Muitas mortes poderiam ter sido evitadas. Não foram apenas resultado do vírus, mas de escolhas deliberadas: atrasar vacinas, difundir remédios ineficazes, espalhar desinformação. O descaso virou método e a morte se converteu em política — expressão plena da necropolítica, isto é, de um modo de governar em que o poder decide quem pode viver e quem deve morrer.
O SUS sobreviveu porque foi sustentado por seus trabalhadores, pela ciência e pela confiança do povo. Mas resistir não basta. É preciso fortalecer a vigilância sanitária, garantir à Anvisa autonomia e recursos, e consolidar um modelo de atenção que coloque a prevenção e a promoção no centro. Defender o SUS e a Anvisa é defender a democracia.
Para que os 35 anos da Lei 8.080 sejam de fato celebrados, é necessário curar as feridas da pandemia e fazer justiça. Só assim poderemos olhar para frente e afirmar o SUS como patrimônio vivo da democracia brasileira.
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No julgamento dos atos golpistas de 8 de janeiro — que a ministra Cármen Lúcia classificou como o mais importante da história do Supremo Tribunal Federal — ela advertiu: “uma coisa é um país, outra um fingimento”.
O Brasil só honrará sua democracia quando tiver coragem de julgar também os crimes cometidos na pandemia. Enquanto isso não acontece, seguimos no fingimento. E não enfrentar esses crimes é um erro histórico que corrói a democracia e nos aprisiona ao passado.
Sem memória e sem justiça, o pacto que sustenta o SUS e a Anvisa fica em risco.