O encontro entre o Direito das Famílias e o Direito Societário tornou-se cada vez mais frequente na jurisprudência brasileira. Dissoluções conjugais envolvendo sócios, partilhas que atingem empresas familiares e execuções de alimentos sobre dividendos são exemplos de situações em que vínculos afetivos se projetam diretamente na esfera empresarial.
Nesse contexto, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) tem exercido papel central: proteger a continuidade da empresa contra a paralisia ou diluição patrimonial, sem descurar da efetividade dos direitos familiares.
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A tensão surge porque a empresa, sobretudo a de caráter familiar, cumpre dupla função. De um lado, integra o patrimônio partilhável, sujeito ao regime de bens (e às regras sucessórias). De outro, é organização produtiva, geradora de empregos e riqueza, cuja desestruturação impacta não apenas os sócios, mas também trabalhadores, credores e a economia local.
Esse duplo papel leva o STJ a ponderar valores constitucionais: de um lado, a função social da empresa (art. 170 da Constituição Federal); de outro, a proteção da família (art. 226 da CF).
Partilha de quotas e valorização patrimonial
Um dos debates mais delicados no STJ diz respeito à comunicabilidade dos frutos de quotas sociais adquiridas antes do casamento ou da união estável, em regime de comunhão parcial de bens, mas que sofreram valorização econômica durante a constância da relação.
O Código Civil, no art. 1.658, prevê que se comunicam os bens adquiridos onerosamente na constância da sociedade conjugal. Isso inclui, em tese, quotas sociais adquiridas nesse período. A controvérsia surge quando as quotas foram adquiridas antes do casamento (ou da união), mas sofreram grande aumento de valor posteriormente. Pergunta-se: deve o acréscimo patrimonial ser partilhado, ou permanece como bem exclusivo do titular originário?
A jurisprudência do STJ tem respondido que a mera valorização econômica não se confunde com aquisição de novos bens. No REsp 1.173.931/RS, a 3ª Turma assentou: “a valorização patrimonial das cotas sociais adquiridas antes do início do período de convivência, decorrente de mero fenômeno econômico, e não do esforço comum dos companheiros, não se comunica”.
No mesmo sentido, o AgInt no AREsp 297.242/RS reiterou que “a valorização patrimonial das cotas sociais adquiridas antes do casamento não deve integrar o patrimônio comum a ser partilhado, por ser decorrência de um fenômeno econômico que dispensa a comunhão de esforços do casal”.
Esse raciocínio se ancora em dois fundamentos principais:
Vedação ao enriquecimento sem causa – não se pode atribuir ao cônjuge que não participou da sociedade o direito à valorização decorrente de fatores de mercado, sem prova de esforço direto ou investimento comum (art. 884 do CC); e
Preservação da estabilidade societária – a empresa não pode ser impactada por oscilações decorrentes de litígios familiares. Se a valorização de mercado fosse partilhável, cada dissídio conjugal poderia gerar disputas sobre flutuações econômicas alheias ao esforço familiar.
A conclusão é clara: somente o acréscimo patrimonial efetivamente adquirido na constância da união se comunica. A valorização econômica de quotas anteriores permanece fora da partilha, salvo se demonstrado que ela decorreu de aportes, investimentos ou esforços comuns realizados durante a sociedade conjugal.
Fraude societária em divórcios e a desconsideração inversa
Se por um lado o STJ garante à empresa a estabilidade da não incidência de partilha da valorização das quotas sociais, por outro, a fraude societária em litígios familiares tem sido enfrentada pelo STJ com base na técnica da desconsideração inversa da personalidade jurídica, admitida quando o cônjuge ou companheiro se vale da empresa para esvaziar o patrimônio comunicável.
No REsp 1.236.916/RS, a 3ª Turma estabeleceu o conceito central: “a desconsideração inversa da personalidade jurídica caracteriza-se pelo afastamento da autonomia patrimonial da sociedade para, contrariamente do que ocorre na desconsideração da personalidade propriamente dita, atingir o ente coletivo e seu patrimônio social, de modo a responsabilizar a pessoa jurídica por obrigações do sócio controlador”.
A decisão reconheceu que esse afastamento do “véu societário” é especialmente necessário no Direito de Família:
“No campo familiar, a desconsideração da personalidade jurídica, compatibilizando-se com a vedação ao abuso de direito, é orientada para reprimir o uso indevido da personalidade jurídica da empresa pelo cônjuge (ou companheiro) sócio que, com propósitos fraudatórios, vale-se da máscara societária para o fim de burlar direitos de seu par. Nessa medida, o que se pretende aqui, com a disregard doctrine, é afastar momentaneamente o manto fictício que separa os patrimônios do sócio e da sociedade para, levantando o “véu” da pessoa jurídica, buscar o patrimônio que, na realidade, pertence ao cônjuge (ou companheiro) lesado.”
A jurisprudência avançou ainda mais no REsp 1.522.142/PR, em que o marido transferiu suas cotas sociais à cunhada poucos dias antes da separação de fato, a exemplo. A 3ª Turma considerou possível a inclusão da sócia beneficiada no polo passivo da ação de divórcio cumulada com partilha, justamente para permitir a análise da fraude.
Como afirmou o ministro Marco Aurélio Bellizze: “a sócia da empresa, cuja personalidade jurídica se pretende desconsiderar, que teria sido beneficiada por suposta transferência fraudulenta de cotas sociais por um dos cônjuges, tem legitimidade passiva para integrar a ação de divórcio cumulada com partilha de bens”.
O relator aplicou a teoria da asserção, segundo a qual as condições da ação devem ser aferidas com base nas alegações iniciais: se a petição aponta fraude na alteração contratual societária, a inclusão da sócia e da própria empresa no polo passivo é medida de rigor, assegurando contraditório e ampla defesa. O Tribunal destacou que “a pertinência subjetiva da insurgente e, por conseguinte, a sua legitimidade ad causam para figurar no polo passivo da demanda, é proveniente da relação jurídica de direito material existente entre a autora e os réus […] pelo eventual conluio existente entre estes, no intuito de malograr a partilha de bens”.
Esses precedentes consolidam três vetores fundamentais:
Finalidade protetiva – impedir que a pessoa jurídica seja usada como máscara para fraudar a partilha.
Requisitos – prova de abuso e confusão patrimonial, a serem apurados nas instâncias ordinárias.
Legitimidade ampliada – o cônjuge lesado pode requerer a desconsideração mesmo sem ser sócio; a sócia beneficiada pode ser chamada ao processo para garantir eficácia da decisão.
Em suma, o STJ entende que a desconsideração inversa é compatível com a proteção da empresa: não busca punir a sociedade, mas apenas neutralizar o uso indevido de sua autonomia patrimonial como instrumento de fraude contra os direitos do cônjuge ou companheiro.
Alimentos e participação nos lucros
Um dos pontos mais sensíveis da interface entre Direito de Família e atividade empresarial diz respeito à incidência da pensão alimentícia sobre valores recebidos a título de participação nos lucros e resultados (PLR).
A 3ª Turma, no AgInt no REsp 2.066.134/SE (2024), reafirmou a orientação de que a PLR não integra automaticamente a base de cálculo dos alimentos. Isto é, a participação nos lucros da empresa pelo alimentante não integra a base de cálculo da pensão alimentícia, por ter natureza indenizatória.
Contudo, o próprio acórdão reconheceu que essa regra não é absoluta, fazendo referência expressa ao precedente paradigmático da 2ª Seção, REsp 1.872.706/DF (2021). Nesse julgamento, a corte uniformizou a matéria, estabelecendo que: “as variações positivas eventuais do alimentante deverão ser incorporadas aos alimentos a fim de satisfazer integralmente às necessidades do alimentado, especialmente em caso de redução proporcional do valor da pensão ou de superveniente alteração de necessidades”.
Ou seja, a jurisprudência reconhece que, em regra, a PLR é verba eventual, de caráter compensatório, não devendo onerar automaticamente o alimentante. Todavia, quando houver demonstração de que a verba fixada não atende ao trinômio necessidade–possibilidade–proporcionalidade, ou quando o percentual dos alimentos é reduzido para adequação à renda ordinária, as parcelas de participação nos lucros podem ser incorporadas, de forma excepcional, para garantir a efetiva proteção do alimentando.
Esse equilíbrio revela a preocupação do STJ em compatibilizar a preservação da empresa com a tutela alimentar. Ao excluir a PLR da regra geral de incidência, evita-se que empresas sejam sobrecarregadas por variações sazonais de caixa. Mas, ao admitir a possibilidade de inclusão em hipóteses de insuficiência ou alteração da necessidade, assegura-se que o crédito alimentar, de máxima relevância constitucional, não seja esvaziado.
Conclusão
O conjunto desses precedentes revela, em rol mínimo, um duplo movimento na jurisprudência do STJ: de um lado, a proteção da empresa contra a paralisação decorrente de litígios familiares, seja pela exclusão da valorização não comunicável de quotas sociais, seja pela preservação da autonomia societária; de outro, a repressão a fraudes e abusos, mediante a desconsideração da personalidade jurídica inversa quando a sociedade é utilizada como instrumento de ocultação patrimonial.
No campo alimentar, soma-se a esse movimento a calibragem entre excluir a participação nos lucros como regra e admiti-la como exceção, para garantir a efetividade do direito fundamental aos alimentos.
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Essa linha jurisprudencial demonstra que a preservação da empresa — prevista no art. 170 da Constituição como valor social — não é incompatível com a tutela dos direitos familiares, garantida pelo art. 226 da Carta. O STJ, ao decidir, realiza verdadeira ponderação constitucional em sede infraconstitucional, equilibrando valores que, em tese, poderiam parecer antagônicos.
A experiência prática indica que o caminho mais seguro para famílias empresárias está na prevenção: cláusulas claras em contratos sociais, mecanismos de governança e planejamento sucessório estruturado. Quando, contudo, o conflito chega ao Judiciário, o papel do STJ é decisivo: evitar que disputas afetivas se convertam em crises econômicas, preservando a empresa sem sacrificar os direitos individuais de seus integrantes.
[1] STJ, REsp 1.173.931/RS, 3ª Turma, Rel. Min. Paulo de Tarso Sanseverino, j. 22/10/2013, DJe 28/10/2013.
[2] STJ, AgInt no AREsp 297.242/RS, 4ª Turma, Rel. Min. Lázaro Guimarães, j. 07/11/2017.
[3] STJ, REsp 1.236.916/RS, 3ª Turma, Rel. Min. Nancy Andrighi, j. 22/10/2013.
[4] STJ, REsp 1.522.142/PR, 3ª Turma, Rel. Min. Marco Aurélio Bellizze, j. 13/06/2017.
[5] STJ, AgInt no REsp 2.066.134/SE, 3ª Turma, Rel. Min. Moura Ribeiro, j. 27/05/2024.
[6] STJ, REsp 1.872.706/DF, 2ª Seção, Rel. Min. Nancy Andrighi, j. 24/11/2021.