Em 2007, uma empresa do Paraná chamada Imcopa, especializada em óleos vegetais, levou ao Supremo Tribunal Federal uma ação contra a inclusão do ICMS na base de cálculo do PIS e da Cofins. O processo recebeu o número RE 574.706/PR. À primeira vista, era apenas mais um caso particular, típico do controle difuso, em que a decisão judicial deveria valer apenas para as partes envolvidas.
Corria em paralelo, também no STF, a Ação Declaratória de Constitucionalidade (ADC) 18, proposta pela União. Aqui, não havia empresa ou contribuinte no polo da ação, mas a defesa abstrata da constitucionalidade da norma que autorizava a cobrança. Era o controle concentrado de constitucionalidade em sua forma mais clássica: julgamento em tese, com efeito vinculante e erga omnes, em tradução livre do latim algo como “vale para todos”.
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A fronteira parecia nítida. De um lado, um recurso individual concreto, fadado a produzir efeitos restritos. De outro, uma ação abstrata, cujo alcance seria universal. Mas em 2008, ao reconhecer repercussão geral no recurso da Imcopa, o STF embaralhou essa lógica. O tribunal anunciou que o resultado daquele processo específico não se limitaria à empresa paranaense — valeria para todos.
Quando, quase uma década depois, em 2017, o Supremo declarou a inconstitucionalidade da inclusão do ICMS na base do PIS e da Cofins, não foi a ADC que produziu o efeito prático, mas sim o recurso extraordinário de um contribuinte. O que começou como uma disputa individual tornou-se a chamada “tese do século”, com impacto bilionário na arrecadação.
O episódio ilustra uma transformação que se repete em outros embates tributários: decisões nascidas em casos concretos, mas que, ao ganharem repercussão geral, atravessam a fronteira do difuso para o concentrado. E, nesse movimento, o que era particular vira regra.
É sobre essa evolução que o artigo de hoje irá tratar.
A evolução constitucional
A jurisdição constitucional brasileira é marcada por um processo de evolução normativa e jurisprudencial que reflete a busca por equilíbrio entre segurança jurídica, igualdade na aplicação da lei e a supremacia da Constituição. Desde a Constituição de 1891, inspirada no modelo americano, o Brasil adotou, inicialmente, um sistema de controle de constitucionalidade difuso, no qual qualquer juiz ou tribunal poderia afastar a aplicação de norma contrária à Lei Maior. Contudo, essa característica produzia decisões limitadas às partes do processo, permitindo divergências interpretativas e gerando tratamento desigual a litigantes em situações idênticas.
A Constituição de 1934 representou marco relevante ao atribuir ao Senado Federal a possibilidade de conferir eficácia erga omnes às decisões do STF em controle difuso. Esse mecanismo mitigava o risco de decisões contraditórias e fortalecia a função uniformizadora da corte. Entretanto, a necessidade de intervenção do Senado ainda revelava certa limitação na força normativa dos precedentes do STF.
A Emenda Constitucional 16/1965 trouxe uma mudança estrutural ao introduzir o controle abstrato de normas perante o STF, com eficácia para todos. Esse movimento ampliou a objetividade das decisões da Suprema Corte e consolidou seu papel como guardiã da Constituição. A jurisprudência evoluiu no entendimento de que tais decisões dispensariam resolução do Senado, reservando-lhe um papel meramente publicizante da decisão do STF.
Mais instrumentos de controle
A Constituição de 1988 ampliou os instrumentos de controle de constitucionalidade, ao criar a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) e, pela Emenda Constitucional nº 03/1993, a Ação Declaratória de Constitucionalidade (ADC), mantendo a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI).
Essas ações, no controle concentrado, possuem efeitos retroativos, erga omnes e vinculantes, reforçando a autoridade das decisões do STF. A Emenda Constitucional 45/2004, ao instituir as súmulas vinculantes, deu ainda mais robustez ao sistema, ao garantir efeitos vinculantes imediatos a todo o Judiciário e à Administração Pública, cuja inobservância legitima reclamação perante o STF.
Essa evolução operou-se mediante forte valorização do controle difuso, promovendo ao mesmo tempo uma expansão do modelo concentrado. O Judiciário brasileiro passou a contar assim com um sistema misto de controle de constitucionalidade, conforme bem analisado pelo plenário do STF na Questão de Ordem na ADC 1/DF, que discutia a constitucionalidade da Lei Complementar 70/91, que instituiu a Cofins.
Durante o julgamento histórico, o relator, ministro Moreira Alves, apontou “a necessidade da demonstração da existência de controvérsia judicial séria sobre a norma ou as normas cuja declaração de constitucionalidade é pretendida” como exigência para apresentação de uma ADC.
Em 2005, ao julgar as ADIs 3.345 e 3.365, o STF expressou o entendimento de que suas decisões em controle difuso também possuem força expansiva, transcendendo as partes envolvidas – maximizando, assim, a eficácia da Constituição. As duas ADIs discutiam uma resolução do Tribunal Superior Eleitoral que estipulava critérios para fixação do número de vereadores nos municípios brasileiros.
Um caso emblemático da tensão entre controle difuso e concentrado de constitucionalidade ocorreu na Reclamação 4.335, envolvendo a progressão de regime de condenado por crime hediondo. O STF já havia declarado a inconstitucionalidade do §1º do art. 2º da Lei 8.072/90 no HC 82.959, mas o juiz local alegou que a decisão tinha eficácia apenas inter partes, típica do controle difuso.
O ministro Gilmar Mendes defendeu a equiparação de efeitos entre decisões difusas e concentradas, mas sua tese foi vencida, mantendo-se a necessidade de intervenção do Senado. A decisão foi proferida oito anos após muitas discussões.
Requisito para Repercussão Geral
Outro ponto central foi a introdução da Repercussão Geral como requisito para apreciação de recursos extraordinários, regulamentada pela Lei 11.418/2006, seguida pelo Código de Processo Civil de 2015. Esse mecanismo reduziu a sobrecarga do STF[1] e reforçou o caráter objetivo às suas decisões, ampliando a eficácia vinculante e garantindo maior uniformidade, em novo passo rumo à consolidação da sua posição de Corte Constitucional.[2]
A modulação de efeitos, prevista no art. 27 da Lei 9.868/1999 e no art. 11 da Lei 9.882/1999, também trouxe novos contornos à eficácia das decisões. Inicialmente restrita ao controle concentrado, passou a ser aplicada também no controle difuso, aproximando os efeitos de ambos os modelos e evidenciando a tendência de equiparação.[3]
A evolução do tratamento da coisa julgada, igualmente, reflete a força dos precedentes. Casos como o RE 590.809/RS, [4] sob o tema/RG 136,[5] que promoveu uma releitura da Súmula 343, evidenciam o impacto de mudanças interpretativas sobre coisa julgada, isto é, sobre o direito constitucional pretérito, dado que os precedentes do STF definem a ordem jurídica por expressarem a própria Constituição, e devem prestigiar a estabilidade da jurisprudência, evitando um estado de surpresa no cidadão.
A corte reafirmou na ocasião o entendimento de que a Súmula 343 tinha sua aplicação restrita às situações em que não existisse decisão do STF em controle de constitucionalidade, havendo divergência jurisprudencial no âmbito dos outros tribunais.
O último intérprete
Essas novidades no quadro normativo brasileiro e a revisitação dos efeitos de julgados frente a precedentes da corte somaram-se ao fluxo da exegese constitucional já em curso no STF, no exercício da singular prerrogativa da última palavra sobre o texto da Lei Fundamental, em prol do crescente prestígio do controle de constitucionalidade.
A trajetória da jurisdição constitucional brasileira revela movimento contínuo de valorização dos precedentes, tanto no controle concentrado quanto no difuso. A tendência é a objetivação das decisões, com efeitos vinculantes e expansivos, assegurando uniformidade e isonomia na aplicação da Constituição.
Ao exercer sua função de Corte Constitucional, o STF confere efetividade máxima à Lei Fundamental, consolidando sua posição como intérprete último do texto constitucional e como eixo de estabilidade do sistema jurídico brasileiro.
[1] Nesse sentido o voto da ministra Ellen Gracie na QO na Ação Cautelar 2.177/PE.
[2] Conforme destacado pelos ministros Celso de Mello na QO na Ação Cautelar 2.177/PE, Gilmar Mendes na QO no Agravo de Instrumento 760.358/SE e, mais recentemente, pela ministra Cármen Lúcia no RE-EDcl 574.706/PR.
[3] Trecho de voto de Ministro Gilmar Mendes, na PET 2.859/SP: “por uma dessas ironias da prática jurídica, o art. 27 da Lei 9.868/99, destinado à aplicação no âmbito do controle abstrato de normas, vem tendo aplicação mais intensa no contexto do modelo incidental de controle de constitucionalidade”. Exemplos: RE 197.917/SP (24.03.2004), HC 82.959/SP (23.02.2006), RE 560.626/RS (12.06.2008) e RE-EDcl 574.706/PR (13.05.2021)
[4] “AÇÃO RESCISÓRIA VERSUS UNIFORMIZAÇÃO DA JURISPRUDÊNCIA. O Direito possui princípios, institutos, expressões e vocábulos com sentido próprio, não cabendo colar a sinonímia às expressões “ação rescisória” e “uniformização da jurisprudência”.
AÇÃO RESCISÓRIA – VERBETE Nº 343 DA SÚMULA DO SUPREMO. O Verbete nº 343 da Súmula do Supremo deve de ser observado em situação jurídica na qual, inexistente controle concentrado de constitucionalidade, haja entendimentos diversos sobre o alcance da norma, mormente quando o Supremo tenha sinalizado, num primeiro passo, óptica coincidente com a revelada na decisão rescindenda.” (RE 590.809, relator ministro Marco Aurélio, Tribunal Pleno, julgado em 22/10/2014, DJe de 24/11/2014)
[5] Tese: Não cabe ação rescisória quando o julgado estiver em harmonia com o entendimento firmado pelo plenário do Supremo à época da formalização do acórdão rescindendo, ainda que ocorra posterior superação do precedente.