A discussão sobre sustentabilidade na atualidade necessariamente passa pela solução do problema das cadeias contratuais e da alocação de responsabilidade entre os diversos agentes econômicos que dela fazem parte. Com efeito, quanto mais a atividade empresarial se desverticaliza e novos arranjos contratuais são implementados, mais é necessário encontrar um ponto de equilíbrio para que as cadeias contratuais preservem a sua eficiência sem se tornarem instrumentos de “irresponsabilidade” organizada.
Com efeito, o princípio que exige a correspondência entre poder e responsabilidade apresenta justificativas não apenas éticas e jurídicas, mas também econômicas. Afinal, se o agente econômico pode exercer poder empresarial ou obter benefícios dos arranjos contratuais sem as devidas responsabilidades, tal cenário gera incentivos para assunção excessiva de riscos e para a geração de externalidades negativas e danos a terceiros.
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Dessa maneira, ao transferir parte de suas atividades para terceiros, via contrato, é inequívoco que as empresas precisam ser diligentes para selecionar seus parceiros comerciais e também supervisioná-los, na medida do possível. Afinal, a delegação de atividades não pode corresponder à total delegação das responsabilidades[1].
Não é sem razão que os bons programas de compliance abrangem igualmente os parceiros comerciais, a fim de deles exigir o cumprimento não só das obrigações decorrentes da regulação obrigatória, mas também daquelas decorrentes de metas ESG voluntariamente estabelecidas. Afinal, estas últimas, ao serem assumidas pelas empresas, devem ser obrigatoriamente respeitadas, na medida em que passam a direcionar as decisões de consumo e de investimento.
No que diz respeito à alocação de responsabilidades dentro da cadeia produtiva, é certo que o direito brasileiro ainda não dispõe de regras específicas para lidar com o tema. Não obstante, é possível concluir, a partir de uma série de regras jurídicas já existentes, que aquele que transfere parte de sua atividade empresarial por meio de contratos permanece com certo grau de responsabilidade pelos danos ocasionados por seus parceiros comerciais.
Em primeiro lugar, no que diz respeito especificamente à sustentabilidade ambiental, a Lei da Política Nacional do Meio Ambiente, ao conceituar, em seu art. 3º, IV, que poluidor é todo daquele “responsável, direta ou indiretamente, por atividade causadora de degradação ambiental”, possibilita a interpretação de que aquele que contrata agente que causa danos ao meio ambiente pode ser considerado poluidor indireto.
Em segundo lugar, tal como já tive oportunidade de salientar em artigo anterior[2], é inequívoca a influência da recente diretiva da União Europeia, ao exigir o dever de diligência em relação a parceiros comerciais. Essa due diligence corporativa, imposta às grandes empresas em questões de sustentabilidade ambiental e de proteção a direito humanos, acaba se aplicando, mesmo que de forma parcial e indireta, ao Brasil, seja por auxiliar a estabelecer os contornos do dever de diligência, seja por incidir sobre empresas europeias com operações no Brasil ou empresas brasileiras com receitas na União Europeia ou que sejam fornecedoras de empresas europeias.
Em terceiro lugar, independentemente da diretiva europeia, o próprio dever de diligência de controladores e administradores de sociedades empresárias já assume importante papel para lidar com problemas de sustentabilidade ao longo da cadeia contratual. Afinal, há muito tempo o dever de diligência deixou de se restringir ao agir bem informado e passou a assumir uma dimensão procedimental, relacionada ao controle de risco[3].
Embora, no Brasil, muito dessa dimensão procedimental tenha se desenvolvido a partir das preocupações com a prevenção de crimes de colarinho branco e atos de corrupção, é inequívoco que tal dimensão pode também ser utilizada em prol dos compromissos com a sustentabilidade.
Em quarto lugar, o princípio da função social da empresa também mostra o compromisso da atividade empresarial com os interesses de terceiros, aí incluídas as questões de sustentabilidade. Não é sem razão que o parágrafo único, do art. 116, da Lei das S/A, afirma que “o acionista controlador deve usar o poder com o fim de fazer a companhia realizar o seu objeto e cumprir sua função social, e tem deveres e responsabilidades para com os demais acionistas da empresa, os que nela trabalham e para com a comunidade em que atua, cujos direitos e interesses deve lealmente respeitar e atender.”
Deste princípio é possível extrair o compromisso de agentes econômicos de não causarem danos ambientais ou a direitos humanos nem direta nem indiretamente, por meio de parceiros comerciais mal escolhidos ou mal fiscalizados. Com a adequada instrumentalização do regime de responsabilidade civil de controladores e administradores de sociedades empresárias[4], acrescenta-se outra camada de proteção aos stakeholders que são lesados em virtude da ação empresarial.
Por fim, ainda devem ser lembradas as cláusulas gerais que governam os contratos na atualidade, como a boa-fé objetiva e a função social do contrato, que também confirmam que não se pode eximir por completo as empresas das responsabilidades pelos atos de seus parceiros comerciais, já que as relações contratuais não podem produzir efeitos danosos sobre terceiros.
Consequentemente, ainda que os tomadores de serviços não tenham responsabilidade plena pelos atos de seus contratados, há de se ajustar algum grau de responsabilidade por parte dos primeiros, ainda que de forma subjetiva e atrelada aos conhecidos parâmetros da culpa in eligendo e da culpa in vigilando.
Sobre essa questão, é fundamental lembrar que, na decisão do STF que autorizou a terceirização das atividades fins, ficou claro que se mantém a responsabilidade subsidiária da empresa contratante, ou seja, da tomadora de serviços. Com efeito, a tese acolhida pelo Tribunal foi a de que “é lícita a terceirização ou qualquer outra forma de divisão do trabalho entre pessoas jurídicas distintas, independentemente do objeto social das empresas envolvidas, mantida a responsabilidade subsidiária da empresa contratante”[5].
Vale ressaltar o trecho culminante do voto do ministro Roberto Barroso, ao mostrar as razões jurídicas e econômicas pelas quais quem aufere as vantagens do contrato também deve assumir os riscos da terceirização:
“De fato, a responsabilidade subsidiária do tomador de serviços, na terceirização, constitui corolário mínimo dos direitos assegurados pela Constituição aos trabalhadores e da vedação a que a exploração da atividade econômica ocorra às custas da dignidade do trabalhador. Tais exigências podem ser inferidas do artigo 7º da Constituição, que constitucionalizou um conjunto amplíssimo de normas trabalhistas e assegurou o direito de acesso dos trabalhadores à previdência social, bem como a medidas de saúde, segurança do trabalho e prevenção de acidentes. Celebrar contratos de terceirização, a baixo custo, com empresas terceirizadas, não fiscalizá-las, apropriar-se de parte das vantagens econômicas auferidas com a violação de tais normas e pretender eximir-se de qualquer consequência decorrente de tal estado de coisas é ilegítimo. Quem terceiriza aufere as vantagens e, portanto, também deve assumir os riscos da terceirização, que não podem ser suportados apenas pelos empregados e pelo Poder Público, em sua vertente de previdência e assistência social.” (grifos nossos)
Tal raciocínio deve ser utilizado igualmente para as demais questões relativas à sustentabilidade, uma vez que reconhece o fio condutor que deve orientar a alocação de responsabilidades dentro das cadeias contratuais.
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Consequentemente, mesmo sem uma legislação específica, o ordenamento jurídico brasileiro já oferece soluções para avançarmos na exigência do cumprimento das obrigações de sustentabilidade pelas empresas no contexto das cadeias contratuais.
Assim, é possível exigir o dever de diligência das empresas em relação a seus parceiros comerciais, pelo menos nas hipóteses em que as tomadoras de serviços agirem culposamente na escolha ou na supervisão dos seus parceiros contratuais.
Há diversas soluções jurídicas que, se bem aplicadas, podem e devem tornar tais obrigações efetivas, independentemente dos incentivos e do aperfeiçoamento que poderá decorrer de legislação superveniente.
[1] https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/constituicao-empresa-e-mercado/voce-nao-pode-terceirizar-responsabilidades.
[2] https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/constituicao-empresa-e-mercado/sustentabilidade-e-dever-de-diligencia
[3] https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/constituicao-empresa-e-mercado/dever-de-diligencia
[4] https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/constituicao-empresa-e-mercado/abuso-de-poder-de-controle-em-face-de-stakeholders
[5] Tema 725. Tese de repercussão jurídica. https://portal.stf.jus.br/jurisprudenciaRepercussao/verAndamentoProcesso.asp?incidente=4952236&numeroProcesso=958252&classeProcesso=RE&numeroTema=725