Na coluna passada, tratava-se do sigilo da fonte parlamentar e da polêmica em torno do acesso, por parte da CPMI do INSS, às informações sobre as visitas do “Careca do INSS” às dependências do Senado.
Como se costuma repetir nos corredores do Congresso, “as CPIs podem muito, mas não podem tudo”. É necessário um equilíbrio, é preciso ter proporcionalidade das diligências e determinações. Isso reforça a importância de outros mecanismos para que a CPI obtenha os elementos de prova dos fatos investigados, notadamente a oitiva dos convocados, sejam testemunhas ou investigados.
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Não custa recordar que, pelo art. 58, § 3º, da CF, as CPIs têm poderes de investigação próprios das autoridades judiciais. Na mesma linha, o art. 2º, caput, da Lei 1.579/1952, que dispõe sobre as CPIs, prevê que: “No exercício de suas atribuições, poderão as Comissões Parlamentares de Inquérito determinar diligências que reputarem necessárias (…)”.
O referido dispositivo legal exemplifica algumas das diligências que as CPIs podem determinar, independentemente de intervenção judicial. Dessas, sem dúvidas, a oitiva dos convocados pela CPI é uma das mais importantes para as investigações.
Ocorre que nos últimos tempos diversas decisões judiciais vêm sendo dadas tornando opcional o comparecimento perante o colegiado. O exemplo mais recente foi a decisão liminar monocrática do ministro André Mendonça na último dia 13 de setembro, noticiada aqui, dispensando os investigados Antônio Carlos Camilo Antunes, o “Careca do INSS”, e Maurício Camisotti de comparecer à CPMI do INSS. O processo judicial corre em segredo de justiça, de modo que não se tem acesso ao seu inteiro teor.
Ainda assim, é possível dedicar o texto de hoje ao tema, já que esse tipo de decisão do ministro André Mendonça vem se repetindo nas últimas CPIs, como na CPMI do 8 de janeiro, quando autorizou o não comparecimento de um depoente, na CPI da Manipulação de Jogos e Apostas Esportivas e na CPI das Bets, quando, por duas vezes, deixou facultativa a ida da influenciadora e advogada Deolane Bezerra ao Senado nas mencionadas CPIs.
Da mesma forma, ainda antes, na CPI da Covid, houve decisões reconhecendo um suposto “direito de não comparecer à CPI”, como no HC 202.940, concedido ao governador do Amazonas. E na CPI de Brumadinho, o empate no HC 171.438 implicou na concessão da ordem para convolar a compulsoriedade de comparecimento em facultatividade e deixar a cargo do paciente a decisão de comparecer, ou não, à Câmara dos Deputados, perante a CPI.
Essencialmente, o entendimento passa pela construção de que, ostentando a condição de investigado, o convocado não pode ser obrigado a comparecer compulsoriamente, haja vista o julgamento das ADPFs 395 e 444, em que o STF considerou inconstitucional a condução coercitiva de investigados ou réus para interrogatório, pois a medida restringiria a liberdade de locomoção e violaria o direito à não autoincriminação e a presunção de inocência.
Aqui não há ocasião para criticar o entendimento, mas convém registrar que um cerceamento temporário de liberdade de locomoção (como é a condução coercitiva), a rigor, não poderia ser equiparado a uma prisão.
Seja como for, o fato é que, nesse julgamento, declarou-se não recepcionado o art. 260, caput, do CPP (“Se o acusado não atender à intimação para o interrogatório, reconhecimento ou qualquer outro ato que, sem ele, não possa ser realizado, a autoridade poderá mandar conduzi-lo à sua presença”).
Ocorre que continua vigente a previsão no art. 3º, § 1º, da Lei 1.579/1952, com redação dada pela Lei 13.367/2016, pelo qual a CPI, embora não tenha poderes para determinar manu propria a condução coercitiva de testemunha, poderá solicitar ao juiz criminal a sua intimação. Foi o que ocorreu com Ronaldinho Gaúcho, por exemplo, conduzido coercitivamente após três faltas, na CPI das Pirâmides Financeiras.
Nada obstante, considerando que o decidido nas ADPFs 395 e 444 também valeria para as CPIs, alguns ministros do STF vêm entendendo que seria ilógico o comparecimento compulsório, na medida em que é garantido o direito de permanecer em silêncio: se o investigado não é obrigado a falar perante o colegiado parlamentar, não faz sentido que seja obrigado a apresentar-se ao ato. Isso como se o direito à não autoincriminação abrangesse a faculdade de comparecer ou não ao ato, quando são duas questões completamente diversas.
No raciocínio desses ministros do STF, o comparecimento do investigado serviria apenas como “instrumento de constrangimento e de intimidação”. Aqui, como se vê, há uma clara má-compreensão da tensão que existe entre a garantia de direitos individuais, especialmente dos investigados, e o interesse público na obtenção de informações sobre os fatos em apuração no colegiado parlamentar.
O papel da CPI não é condenar, punir ou indiciar quem quer que seja, mas, sim, jogar luzes sobre os acontecimentos relevantes da vida pública e da ordem constitucional, legal, econômica e social do país.
Como sabido, a tarefa do Legislativo não se esgota na função legislativa. A função de investigação de fatos relacionados à sua competência é corolário da função de legislar. Trata-se de atribuição política: a CPI se presta a esclarecer fatos sensíveis ao conjunto da população. Tal poder de investigar tem por finalidade fornecer as informações para o bom desempenho da função de elaborar atos normativos. A resposta política essencial que se busca com a CPI é o aprimoramento do ordenamento jurídico, pela aprovação de novas leis, para que os fatos determinados apurados não se repitam.
Eventual responsabilização criminal dos envolvidos em potenciais crimes ou infrações de outra natureza permanece a cargo do Ministério Público, a quem a CPI poderá encaminhar o relatório final para adoção das providências cabíveis, caso algum indiciamento tenha sido sugerido pela CPI. Esse é o procedimento: a CPI não julga, não aplica penalidades. A CPI não se realiza contra pessoas, mas para apurar fatos tidos por irregulares.
Daí que é preciso ouvir as pessoas como parte essencial dos trabalhados da CPI, seja na qualidade de testemunhas ou investigados, já que a ambos se garante o direito ao silêncio e à não autoincriminação. As oitivas servem a um só tempo como meio de prova e como meio de defesa. Por isso, o justo equilíbrio na tensão entre direitos individuais e da coletividade implica reconhecer a obrigatoriedade de presença, com a faculdade de se utilizar do silêncio. Assim, uma vez convocado, o investigado deve comparecer, como se fosse um serviço obrigatório.
Igualmente grave nesse contexto é o fato de que as decisões que vêm liberando os depoentes de ir às CPIs costumam ser liminares monocráticas em sede de habeas corpus e ainda há o entendimento do STF no sentido de que, contra as decisões que conferem tais salvos-condutos, não cabe qualquer tipo de recurso pelo presidente da CPI, apontado como autoridade coatora.
Por exemplo, no HC 254.442 AgR, também da relatoria do ministro Mendonça, lê-se que “a concessão de ordem de habeas corpus, diante da constatação de constrangimento ilegal decorrente da lesão ou ameaça de lesão ao direito individual de ir e vir de alguém, não causa “gravame” ou “prejuízo” em face da autoridade destinatária da decisão”. Ou seja, o presidente da CPI não tem legitimidade recursal. Assim, só lhe restaria, em tese, a via do mandado de segurança com o propósito de resguardar as prerrogativas constitucionais da CPI.
Não há dúvidas de que essas decisões do STF dispensando o comparecimento de convocados implicam prejuízo aos trabalhos parlamentares. A reunião da CPMI do INSS teve que ser cancelada. Por mais que a CPI possa determinar outras providências, como quebras de sigilo fiscal, bancário, de dados, etc., as decisões judiciais que esvaziam as oitivas causam um efeito desmobilizador e cada vez mais outros convocados se valem dos mesmos argumentos para se esquivar do comparecimento.
Se esse tipo de decisão se perpetua, não existirá mais o papel da CPI.
A alegação de que existem inúmeros casos em que as CPIs convocam indivíduos investigados na qualidade de testemunhas não justifica o entendimento aqui criticado, dado que, independentemente do nomen iuris formal atribuído, as CPIs já vêm assegurando o direito ao silêncio e a proteção contra a autoincriminação a todos.
Veja-se, por exemplo, o próprio Ofício 78/2025-CPMI-INSS, de 3 de setembro de 2025, de convocação de Antônio Carlos Camilo Antunes, o “Careca do INSS”, em cujo último parágrafo se lê: “Vossa Senhoria tem o dever legal de manifestar-se sobre os fatos e acontecimentos relacionados ao objeto da investigação, estando-lhe, entretanto, assegurados os direitos e garantias inerentes à ampla defesa, como assistência de advogado e deixar de responder a perguntas que lhe forem endereçadas para evitar a autoincriminação”.
Como se vê, a própria notificação da CPI já garantiu previamente os direitos fundamentais ao silêncio e à não autoincriminação, demonstrando a ausência de interesse de agir para pleiteá-los junto ao Poder Judiciário em habeas corpus preventivo ou por qualquer outra via.
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Um caminho para resolver esse problema pode estar na PEC 13/2025, de autoria do senador Romário (PL-RJ), que pretende alterar o art. 58 da CF para incluir o § 3º-A com o seguinte teor: “O comparecimento de qualquer cidadão ou autoridade é obrigatório nas comissões parlamentares de inquérito, inclusive com possibilidade de condução coercitiva, em face do objetivo precípuo de informar a sociedade e de fiscalizar e aperfeiçoar a legislação”.
De forma semelhante, na PEC 115/2019, de autoria do deputado Vanderlei Macris (PSDB-SP), pretende-se inserir no art. 58 da CF que o mandado de intimação expedido pela CPI deve indicar os motivos da convocação e informar expressamente que a pessoa intimada tem direito ao silêncio, à não autoincriminação e à assistência de advogado, tornando desnecessária decisão judicial para tanto. Essa mesma PEC pretende, ainda, atribuir à CPI o poder para realizar conduções coercitivas de testemunhas, de investigados ou de acusados que, regularmente intimados, deixem de comparecer.