O Brasil vive uma crise silenciosa, mas profunda que envolve o Congresso Nacional. Não se trata apenas de falta de popularidade ou de confiança, mas de algo mais estrutural: um Legislativo ocupado por quadros cada vez menos preparados, capturados por interesses privados imediatos e descolados da função republicana de legislar em nome da coletividade.
Nesse ambiente, abre-se um campo fértil para que grupos corporativos, organizados e tecnicamente mais qualificados, avancem suas agendas sem maiores resistências. É aí que entram elites estatais, os CEOs da administração pública, como são os integrantes de carreiras públicas de elite, especialmente as judiciárias e de controle, a exemplo da magistratura, Ministério Público, Tribunais de Contas, advocacia pública e, mais recentemente, a Defensoria Pública, em suma, corporações que contam com capacidade técnico e prestígio simbólico.
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Quando o Legislativo se mostra desqualificado e capturado por grupos que se orientam por interesses nada republicanos, abre caminho para que esses avancem pautas que, longe de priorizar o interesse público, reforçam privilégios corporativos e consolidam uma lógica de predação sobre o Estado.
Nas duas últimas décadas, observa-se um enfraquecimento qualitativo do Legislativo que vai além da política tradicional de barganhas: a presença de parlamentares com baixa capacidade técnica, pouca conexão com debates nacionais e forte dependência de emendas ou favores para manter sua base eleitoral. Parlamentares mais preocupados com seguidores de redes sociais, em alimentar extremistas, mais voltados para debates infundados e sem conexão com a realidade das pessoas.
Esse quadro tem dois efeitos principais para pensar a predação do Estado. Primeiro, reduz a capacidade do Parlamento de aprovar medidas que estimulem políticas públicas melhores, baseadas em evidências. Segundo, e mais grave, abre espaço para que grupos privados, tais como elites estatais representadas por suas associações de classe, imponham suas agendas. Sem quadros preparados para questionar, negociar ou propor alternativas, o Legislativo se torna um canal de homologação de demandas previamente costuradas no “teatro das sombras”.
Nesse “teatro”, elites estatais aparecem como atores privilegiados. Não porque sejam “iluminados”, mas porque contam com atributos que faltam ao Parlamento: informação, organização, discurso técnico e legitimidade simbólica. Além disso, essas elites têm estruturas associativas fortes, capazes de exercer pressão coordenada em Brasília e nos estados. Sim, nos Estados, até porque muito de que se descreve aqui aplica também às Assembleias Legislativas.
O resultado é que pautas corporativas, que vão desde reajustes salariais, manutenção de penduricalhos, prerrogativas de foro, mecanismos de blindagem contra controles externos, avançam com relativa facilidade, ou seja, com menor resistência que um Parlamento mais republicano exigiria. O custo político para aprovar essas medidas é baixo, porque não há resistência articulada. Muitas vezes, as comissões legislativas responsáveis por analisar esses projetos são frágeis, mal assessoradas ou simplesmente capturadas pela lógica da troca de favores.
Para essas elites estatais, a equação é simples: um Legislativo desqualificado, leia, despreparado, raso, oferece terreno perfeito para a expansão de interesses privados, como são os interesses corporativos. E para os parlamentares, apoiar essas pautas pode significar alianças estratégicas, apoio jurídico em disputas locais ou simplesmente a tranquilidade de não enfrentar corporações capazes de mobilizar poderosos mecanismos de controle – investigações cíveis e criminais, mandados de busca e apreensão, ação penal, processos judiciais, auditorias, e, com isso, a opinião pública contra eles.
De espaço de mediação e equilíbrio, o Legislativo converte-se em palco de homologação de um “teatro das sombras”. Não é mais o lugar ideal onde interesses diversos se confrontam e se traduzem em políticas públicas; torna-se, em vez disso, um facilitador de decisões tomadas fora dele e contra o interesse público.
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Esse deslocamento tem efeitos profundos. Em primeiro lugar, cidadãos votam em representantes que não representam de fato, mas que chancelam interesses de grupos mesquinhos e demandas corporativistas predatórias, contra os interesses do povo soberano. Em segundo lugar, fortalece uma lógica tecnocrática e corporativista, em que grupos específicos e que ocupam o topo dessas estruturas, capturam os recursos e as regras do Estado para benefício próprio.
Importante não confundir essas elites estatais com a maior parte do serviço público, que não conta com acessos privilegiados a gabinetes de parlamentares, não tem autonomia para drenar o fundo público para os próprios contracheques. A maior parte dos servidores públicos continua com demandas legítimas por melhores condições de trabalho e salário e contra todo tipo de assédio.
A dinâmica aqui descrita se refere a elites estatais e deve ser compreendida não como legítima, mas como predação corporativista. Em vez de agir em favor do bem público e do serviço público, corporações de elite utilizam seu poder para garantir privilégios, ampliar benefícios e blindar-se de qualquer forma de controle ou responsabilização. O que orienta esse comportamento é uma espécie de interdependência de privilégios, em que essas elites se beneficiam e não se fiscalizam.
Não se trata de exceções pontuais, mas de uma lógica organizadora. Salários que crescem em cascata, auxílios de toda natureza, mecanismos de foro especial, resistência a qualquer tentativa de regulação e controle externo: tudo isso compõe um quadro em que corporações de elite se protegem e expandem suas fronteiras de poder, mesmo à custa da sociedade.
E o Legislativo, que deveria ser o espaço legítimo para frear esse processo, frequentemente se torna cúmplice. Deputados e Senadores de baixa estatura política encontram vantagens em apoiar essas agendas corporativas de elite: acesso a favores, proteção em disputas judiciais ou simples comodidade de evitar confrontos com corporações poderosas.
Os efeitos dessa engrenagem são altos e duradouros. Recursos que poderiam financiar políticas públicas melhores acabam direcionados para sustentar benefícios corporativos. A autonomia do gestor público se reduz, porque qualquer decisão pode ser judicializada ou criminalizada. E a confiança na democracia se esgarça, pois a população percebe que as instituições estão mais preocupadas em se proteger do que em atuar para os cidadãos.
A combinação de um Parlamento desqualificado com corporações predatórias gera paralisia decisória. Gestores públicos, governadores, secretários estaduais, sobretudo prefeitos e secretários municipais hesitam em agir, temendo o cerco político e jurídico. E quando agem, muitas vezes correm risco de serem bloqueados por interpretações corporativas que servem mais à autopreservação institucional do que ao interesse público.
Esse processo alimenta um ciclo vicioso. Quanto mais desqualificado o Parlamento, mais espaço para o avanço das corporações altamente elitizadas, que não espelham a sociedade. Quanto mais essas corporações avançam, mais o Legislativo perde relevância. E quanto mais irrelevante se torna, mais difícil atrair quadros qualificados para ocupar suas cadeiras. O resultado é um círculo de degradação que compromete o funcionamento da democracia brasileira.
Romper esse ciclo não significa apenas eleger representantes “melhores”, mas criar condições institucionais para que o Legislativo funcione de fato como poder de Estado com assessorias técnicas qualificadas, transparência nos processos, maior conexão com a sociedade e autonomia para enfrentar pressões corporativas. O que se observa das principais comissões no Congresso Nacional é justamente o contrato na maioria das vezes. Estão repletas de desqualificados para os temas em discussão.
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O aspecto mais preocupante desse quadro seja se acostumar com a ideia de que o Congresso não é capaz de resistir a pressões, de que dirigentes de associações de classe que defendem interesses corporativos de elites estatais devem ocupar o Parlamento, e de que privilégios corporativos são parte inevitável do “sistema”. Essa normalização é perigosa porque mina, em silêncio, a confiança na democracia, nos partidos e nas instituições judiciárias e de controle. No limite, o risco é a corrosão lenta e constante.
A crise do Legislativo é um problema que ameaça a democracia e as políticas públicas. Enquanto continuar desqualificado, elites estatais continuarão a avançar suas pautas predatórias, transformando o Estado em instrumento de proteção corporativa. Reverter esse quadro exige coragem política, transparência e engajamento da sociedade. É preciso romper com a lógica de troca de favores e de interesses nada republicanos que hoje sustenta habita o Legislativo.