Governança além das reformas

Há décadas discutimos a necessidade de uma grande reforma administrativa. A cada nova crise, ressurge a crença de que uma mudança estrutural — ampla, definitiva e quase miraculosa — poderá resolver os problemas históricos do Estado brasileiro, uma nova busca por uma nova panaceia. Mas a realidade insiste em nos mostrar que não existe solução mágica.

Se observarmos a trajetória da gestão pública brasileira, veremos um processo silencioso, incremental, um aprimoramento institucional constante. Janelas de oportunidade permitiram algumas reformas estruturais e estabeleceram marcos importantes: o DASP, que nos anos 1930 buscou racionalizar a máquina e separar o público do privado; o Decreto-Lei 200, de 1967, que ensaiou maior flexibilidade; e a reforma dos anos 1990, de Bresser-Pereira, que conquistou corações e mentes da burocracia brasileira ao enfatizar os resultados da política pública.

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Esses movimentos, contudo, não impediram que voltássemos, repetidamente, a essa busca incessante de uma bala de prata sem nem sequer uma avaliação justa que justifique acusar os sucessos ou insucessos das reformas implementadas.

Assim, de tempos em tempos, retomamos o mesmo diagnóstico: falta racionalidade administrativa, faltam incentivos adequados, falta capacidade de implementação. Contudo, sem uma avaliação competente e contínua das medidas propostas e implementadas pelas reformas, é possível questionar a precisão do diagnóstico, correndo-se o risco de sucumbir a uma leitura superficial, alicerçada em expectativas não cumpridas — talvez sequer almejadas pelas propostas — ou mal implementadas. Daí a tentação de propor uma nova reforma, como se ela pudesse redimir todas as ineficiências acumuladas.

A questão, portanto, talvez seja menos de desenho institucional e mais de execução. Criamos instrumentos robustos — Plano Plurianual, Lei de Responsabilidade Fiscal, carreiras de gestão, controladorias, iniciativas de transformação digital — mas não avançamos o suficiente em sua implementação efetiva. Continuamos a negligenciar dados, a produzir teses frágeis e a nos conformar com diagnósticos superficiais.

Isso porque a resposta não está no desenho da política, mas na coordenação e nos incentivos de sua implementação. É nesse ponto que se impõe um debate sobre governança. Governar não é apenas formular regras, mas garantir que elas funcionem. Isso envolve três pilares:

Definição dos responsáveis e a alocação estratégica de recursos: quem define as prioridades das políticas públicas e a direção dos investimentos? O Sistema Único de Saúde é um exemplo de estrutura decisória que combina prestação de contas e participação social na formulação de estratégias para a saúde, desde o atendimento até a alocação de insumos essenciais. Esse modelo já foi amplamente estudado e, quando adequado, pode servir de referência para outras políticas públicas fundamentais, como a própria gestão pública.

Estabelecimento de sistema de incentivos que orientem o percurso das políticas: trata-se da definição de prêmios e punições que direcionam o comportamento de servidores, beneficiários e demais atores envolvidos nas políticas públicas. Essa medida exige a participação intensa da academia e da sociedade civil organizada, principais produtores de conhecimento e articuladores das políticas públicas.

Monitoramento e avaliação: o § 16 do artigo 165 da Constituição estabelece a necessidade de monitoramento e avaliação das políticas públicas como requisito para a elaboração do Plano Plurianual, da Lei de Diretrizes Orçamentárias e da Lei Orçamentária Anual. Falta apenas regulamentar. Afinal, de que forma o Estado mede os resultados de suas políticas? E quais resultados eram esperados desde o início? Essas são condições básicas para fundamentar a alocação de recursos.

A consolidação desses pilares pode ser atendida com a estruturação de um Sistema Único de Gestão Pública. Se conseguimos construir sistemas nacionais como o SUS e o SUAS – Sistema Único de Assistência Social, por que não tratar a gestão pública em si como política estruturante, estratégica e transversal? Em vez de uma promessa difusa de reforma, poderíamos pensar a governança das políticas públicas como campo próprio — com padrões nacionais, mecanismos de participação social, espaço para inovação e ênfase em monitoramento e avaliação permanentes.

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A insistência em reformas amplas, que prometem reinventar o Estado, esconde um paradoxo: não é de mais regras que carecemos, mas de capacidade de cumpri-las. A grande transformação não virá de leis complementares ou emendas constitucionais, mas da paciência institucional de consolidar práticas, alinhar incentivos e ampliar a responsividade.

Talvez seja hora de admitir que a gestão pública brasileira já passou por reformas suficientes. O desafio agora é outro: implementar o que temos, aprender com o que funciona e corrigir o que não entrega. É menos glamouroso do que anunciar uma revolução, mas muito mais transformador.

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