A recente decisão do STF sobre a cobrança do Diferencial de Alíquota do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (Difal), que formou maioria a favor de sua exigibilidade a partir de 2022, é um novo capítulo na discussão sobre a modulação de efeitos. A proposta do ministro Flávio Dino, acolhida pela maioria, sugeriu que a cobrança não se aplicasse aos contribuintes que já haviam ajuizado ações até novembro de 2023, sob a justificativa de proteger a segurança jurídica e a boa-fé daqueles que se anteciparam à indefinição judicial.
O que se observa no caso do Difal não é um evento isolado, mas a manifestação mais recente de uma prática que levanta sérios questionamentos sobre o uso da modulação de efeitos. O instituto, originalmente concebido para ser um mecanismo excepcional para resguardar a segurança jurídica, tem se tornado uma ferramenta de discricionariedade, com consequências para a previsibilidade do sistema e para o princípio da isonomia.
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Alguns casos emblemáticos ilustram essa realidade. No caso da Exclusão do ICMS da base do PIS/Cofins (Tema 69), a corte modulou os efeitos da decisão de inconstitucionalidade para que ela só produzisse efeitos a partir de 15 de março de 2017, ressalvando somente as ações judiciais e administrativas já ajuizadas.
Essa decisão beneficiou apenas aqueles que já haviam litigado, criando um cenário de “primeira” e “segunda” classes de contribuintes. Recentemente, em 2025, o próprio STF precisou rever sua modulação para “redefinir os limites temporais” de aproveitamento dos créditos, devido à insegurança e à falta de clareza da decisão inicial.
De forma similar, no julgamento da ADC 49, sobre a não incidência de ICMS em transferências entre estabelecimentos da mesma empresa, o Supremo modulou os efeitos para que a decisão só tivesse validade a partir de 2024, exceto para as empresas que já tinham processos em curso. Essa modulação gerou uma nova onda de insegurança, com os estados lavrando autos de infração, o que forçou o STF a intervir novamente em 2025 para “rever e esclarecer” os efeitos e impedir cobranças retroativas.
A mesma lógica se repetiu no julgamento sobre a Decadência de Contribuições Sociais (RE 560.626), em que a corte definiu que a “lógica de proteção seria o ajuizamento de ação judicial em momento anterior à conclusão do julgamento”. Ao tornar a judicialização um requisito para a proteção do contribuinte, a decisão teve o efeito de estimular o ajuizamento de novas ações e impulsionar o contencioso no país.
A modulação de efeitos, em sua essência, é a capacidade de um tribunal de ajustar os efeitos temporais de suas decisões, restringindo sua eficácia. Em vez dos efeitos retroativos (ex tunc), típicos de uma declaração de inconstitucionalidade, a modulação permite que a decisão produza efeitos apenas prospectivamente (ex nunc), a partir de um marco temporal fixado. Sua base legal está no art. 27 da Lei 9.868/99 e, mais recentemente, no art. 927, §3º, do Código de Processo Civil de 2015.
A modulação deveria se aplicar de forma excepcional, em situações nas quais a alteração de um entendimento consolidado pudesse gerar uma desestabilização social ou econômica intolerável. No entanto, a prática do STF tem demonstrado uma “contínua banalização” do instituto, que deixou de ser a “exceção” e se tornou quase a “regra” em questões tributárias que envolvem a arrecadação.
Essa prática levanta uma crítica: ao permitir que uma norma declarada inconstitucional continue a produzir efeitos, a modulação contraria o princípio de que uma norma inconstitucional é nula desde sua criação. A própria doutrina constitucionalista questiona a constitucionalidade do artigo 27 da Lei 9.868/99, argumentando que, ao adiar a invalidade da norma, o instituto permite que o vício constitucional persista, gerando obrigações para os contribuintes mesmo após o reconhecimento de sua ilicitude pela Suprema Corte.
A alegação de “segurança jurídica” é frequentemente usada como justificativa para essa flexibilização, mas, na prática, o tribunal acaba por subordinar o direito constitucional a considerações de cunho econômico e político, que deveriam ser alheias à sua função jurisdicional.
Em vez de reduzir o volume de litígios, a modulação tem o efeito colateral de estimular o ajuizamento de novas ações. A imprevisibilidade do marco temporal imposto pelo STF, que muitas vezes é instável, reforça a necessidade de judicialização para “reservar o direito” e garantir que o contribuinte não seja prejudicado por uma modulação que favoreça somente quem litigou.
Essa dinâmica cria uma situação desigual para o contribuinte. Aquele que age com prudência e boa-fé, cumprindo a legislação e recolhendo o tributo posteriormente declarado inconstitucional, acaba em uma situação pior do que o contribuinte que assumiu o risco de não recolher ou que se antecipou e entrou com a ação judicial. Ao premiar o litigante e ignorar o contribuinte cumpridor, a jurisprudência do STF envia uma mensagem de que a conformidade fiscal e a confiança no sistema não são recompensadas. Essa inversão da “confiança legítima” não apenas abala a fé no Judiciário, mas também desincentiva a conformidade espontânea.
Além de sua injustiça intrínseca, a estratégia de “reservar o direito” por meio de ações judiciais contribui diretamente para a sobrecarga da máquina judiciária. A instabilidade na jurisprudência, agravada pela modulação, força empresas e advogados a ajuizarem processos sobre “todas as questões noticiadas pela mídia”.
Milhares de processos são protocolados não para buscar um direito consolidado, mas para “garantir” um direito que o STF poderá, por sua própria discricionariedade, restringir no futuro. O próprio tribunal, ao tentar conciliar segurança jurídica e interesse fiscal por meio da modulação, acaba por fomentar uma massa de litígios que ele mesmo, em última instância, terá de julgar, tornando a Justiça mais morosa, menos efetiva e acessível.
A modulação de efeitos no Brasil tem sido impulsionada por um fator que extrapola o campo estritamente jurídico: o impacto fiscal. A utilização de dados sobre o “impacto financeiro” das decisões tem sido cada vez mais recorrente para sustentar a necessidade de modular os efeitos e preservar o interesse social, que, na prática, acaba se traduzindo em interesse da arrecadação.
O problema central dessa prática reside na falta de transparência. Os dados de impacto fiscal que servem de base para a decisão de modular não são submetidos a contraditório, e as metodologias de cálculo não são divulgadas. Essa opacidade transforma a decisão, que deveria ser puramente jurídica, em um ato de natureza política. Um tribunal de última instância deveria decidir sobre a constitucionalidade de uma norma, não sobre suas consequências econômicas para o Tesouro.
A decisão de modular, baseada em um risco fiscal que não é publicamente escrutinizado, demonstra que o tribunal está pesando interesses políticos (garantir a receita do governo) contra interesses jurídicos (aplicação plena da lei).
Essa subordinação da função jurisdicional à gestão orçamentária confirma a crítica de que o STF se tornou um “órgão político e não puramente de direito”. O fato de a modulação ser mais frequente e rigorosa quando há risco de perda de receita para o fisco do que quando a decisão beneficia o contribuinte é uma evidência contundente dessa politização. O STF, ao assumir a responsabilidade pelas contas públicas, ignora que essa função é do Poder Executivo e, ao fazê-lo, deslegitima sua própria autoridade como guardião da Constituição.
A análise da jurisprudência do STF revela uma preocupante distorção no uso da modulação de efeitos. O que deveria ser uma ferramenta excepcional, utilizada com parcimônia para proteger a segurança jurídica e o interesse social em face de alterações de entendimento, transformou-se em uma fonte de imprevisibilidade e injustiça. O instituto, ao invés de pacificar o ambiente jurídico, fomenta o contencioso judicial e penaliza o contribuinte que age com boa-fé e prudência.
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A modulação, da forma como é praticada no Brasil, demonstra uma crescente inclinação do STF para atuar como um agente de política fiscal, protegendo a arrecadação do Estado em detrimento da aplicação pura do direito. Ao usar dados de impacto fiscal, muitas vezes sem contraditório, a corte se afasta de sua função constitucional de guardiã da lei e se aproxima perigosamente da função do Poder Executivo. Isso não apenas abala a confiança dos contribuintes no Judiciário, mas também subverte o princípio da isonomia, criando um ambiente onde o direito se torna um privilégio para aqueles que se arriscam a litigância preventiva.
Para restaurar a previsibilidade e a equidade no sistema legal, é imperativo que o STF retorne aos princípios originais do instituto. A modulação deve ser a exceção, aplicada com extrema parcimônia e, principalmente, com transparência na sua justificativa e na metodologia de avaliação de seu impacto. O interesse social a ser protegido deve ser o do conjunto da sociedade, incluindo o contribuinte, e não somente o interesse fiscal do governo. Sem uma revisão profunda e um realinhamento de sua prática, a corte continuará a ser, ironicamente, a principal fonte da instabilidade que ela própria deveria combater.