Uma análise das sucessivas disputas entre o Congresso Nacional e agências reguladoras nos últimos anos, feita pela pesquisadora Roberta Simões Nascimento, professora de direito da Universidade de Brasília (UnB), mostrou que, na maioria dos casos, o Congresso é incapaz de, por lei, superar ou derrubar regulações já aprovadas pelas agências.
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“Embora o Congresso possa legislar e tenha diversos mecanismos de controle parlamentar, a maioria das tentativas não será bem-sucedida, especialmente quando já existe uma norma publicada pela agência”, diz Nascimento.
Ou seja, na análise de Nascimento, as tentativas do Congresso de determinar a agenda regulatória ex ante (antes da publicação da norma) têm mais sucesso do que aquelas ex post (depois).
“No entanto, isso não quer dizer que não existam outros mecanismos prévios para tentar informar, influenciar e direcionar a regulação”, afirma Nascimento em entrevista ao JOTA. “As chances de controle são maiores nesses casos.”
Em um artigo publicado na revista FGV de Direito, a professora descreveu elementos que costumam determinar quem terá prevalência na disputa dentro da dinâmica regulatória.
De acordo com a revisão de literatura jurídica e a análise de casos concretos feitas por Nascimento, é necessário o alinhamento de ambas as casas do Legislativo, do Executivo e de outros agentes, como os tribunais de contas, para que um projeto de lei supere a regulação de uma agência.
“Basta que o entendimento da agência esteja alinhado com uma das casas legislativas, mesmo que conflite com a outra, para que sua decisão não seja derrubada”, diz ela no artigo. “Da mesma forma, o Legislativo não será capaz de exercer dominância sobre as agências se o Executivo for contrário, caso em que o presidente da República tenderá a vetar projetos de lei” com esse objetivo.
O Congresso quer mudar esse equilíbrio de poder. A Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 42, de 2024, visa dar poder às Comissões da Câmara para fiscalizar as agências reguladoras. A proposta foi aprovada pela Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara em 19 de agosto de 2025, mas ainda não tem data para ir ao plenário. Na justificativa, os deputados que fizeram a proposta afirmam que ela “pretende equilibrar a atuação do Congresso Nacional em relação às agências reguladoras, já que, atualmente, apenas o Senado Federal possui competência privativa acerca do tema”. Atualmente o Senado é responsável por aprovar os nomes dos dirigentes das agências.
Cabo de guerra
Um exemplo concreto de situação em que a agência venceu o cabo de guerra com o Congresso foi a disputa entre as casas e a Agência Nacional de Aviação Civil (Anac) sobre a cobrança de bagagens despachadas.
Antes da resolução 400, de 2016, as companhias embutiam o serviço de despache de bagagem no preço da passagem aérea, independentemente de ele ser utilizado ou não. Com a resolução, elas foram autorizadas a cobrar separadamente pelo despacho, serviço que deixou de integrar automaticamente o contrato de compra da passagem.
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Houve diversas tentativas do Congresso para derrubar essa resolução, mas em última instância houve um veto presidencial contrário a essas tentativas, a última em 2022. E nunca houve maioria absoluta em ambas as casas do legislativo para derrubar o veto presidencial sobre o tema. Assim prevaleceu o entendimento da Anac a favor da derrubada da “gratuidade” obrigatória. Todo esse processo foi analisado na pesquisa de Nascimento.
Outro caso citado pela pesquisadora é o da lei 13.454, de 2017, que autorizava a produção, a comercialização e o consumo, sob prescrição médica, de determinados anorexígenos que não conseguiram autorização da Anvisa para circulação no Brasil. Essa lei acabou sendo declarada inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal (STF) em 2021.
Para Nascimento, no entanto, uma tentativa de criar mecanismos para coibir a interferência do Congresso não é o caminho para ampliar a segurança jurídica e diminuir o risco regulatório.
Pelo contrário, diz ela, mesmo que o Congresso tenha dificuldade de alterar normas publicadas, quando existe um questionamento, as agências têm a tendência a justificar melhor suas decisões.
“Tanto que elas tomam muito mais cuidado na fundamentação quando o tema é mais polêmico ou mais conhecido do público em geral. A inexistência de supervisão cria um monopólio decisório que gera mais insegurança”, afirma a pesquisadora. Mesmo em países onde existem órgãos de concentração da supervisão regulatória, como nos EUA, eles funcionam como agências únicas.
“Quando um órgão sabe que vai ser controlado, ele tem que olhar para os demais agentes. Pressões são saudáveis e submetem as agências à accountability.”
Para evitar que essa supervisão se traduza em insegurança jurídica, diz Nascimento, o necessário é que haja um investimento na melhor fundamentação das decisões e no seguimento à risca dos procedimentos já existentes.
Uma medida necessária nesse sentido é a melhora das análises de impacto regulatório.
“Em muitos casos, a análise de impacto regulatório (AIR) é apenas pró-forma”, afirma Nascimento.
Segundo uma pesquisa do economista da UNB Fábio Saab, publicada pela FGV Ebape, até 2018, as análises de impacto regulatório foram aplicadas de forma modesta, incompleta e não sistêmica. A partir de 2021, elas se tornaram obrigatórias e sua qualidade melhorou, mas continua a desejar em diversos aspectos. Grande parte das 21 AIR analisadas no estudo não consideravam fatores como o impacto da não-decisão e falhavam na comparação de alternativas regulatórias. Ou seja, não consideravam outras opções de normatização ou, por exemplo, a autorização condicionada a certas condições.
Especialista em direito público com foco em regulação sanitária, o professor Guillermo Glassman concorda que essa análise muitas vezes deixa a desejar e acrescenta que em diversos casos as audiências e consultas públicas também são tratadas apenas como uma formalidade.
“É o caso da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), com a qual eu atuo mais diretamente”, afirma Glassman, que é sócio do escritório L.O. Baptista, pós-doutor pela Universidade de São Paulo (USP) e coordenador do primeiro curso de extensão em Direito de Life Sciences do Brasil, oferecido pela Câmara de Comércio Brasil-Canadá (CCBC).
“A Anvisa é muito pouco aberta ao diálogo com o setor regulado, principalmente a indústria farmacêutica, que é tratada como inimiga, não como uma parte legitimamente interessada. A Anvisa não recebe as empresas e muitas vezes, quando faz audiências públicas, já tem sua visão formada, que não muda.”
O advogado Henderson Fürst, sócio do Chalfin, Goldberg e Vainboim e especialista em biodireito, tem a mesma crítica sobre a fundamentação da decisão em relação à Agência Nacional de Saúde (ANS).
“Temos lidado com decisões da ANS que são fundamentadas de forma discricionária, atribuindo interpretações extensivas ou inadequadas à sua própria regulação ou à legislação aplicável”, afirma ele. “Isso gera um claro abuso regulatório que causa insegurança jurídica ao setor, que já enfrenta a judicialização excessiva.”
A percepção do advogado de que as agências reguladoras dificultam o exercício de atividades econômicas e investimentos é similar à da maioria dos respondentes do Índice de Segurança Jurídica e Regulatória (Insejur).
Criado pelo JOTA em parceria com professores do Insper para avaliar a percepção do setor privado sobre a segurança jurídica e regulatória no Brasil, a pesquisa verificou que 47% dos respondentes acreditam que as agências dificultam os investimentos no país. Outros 29% não concordam nem discordam na afirmação e 24% discordam da afirmativa.
Fürst atua em caso envolvendo a questão dos cartões de pagamento de serviços de saúde. É um tema no qual a agência está fazendo um sandbox, ou seja, para o qual tem um espaço de teste que permite uma certa liberdade e imunidade para empresas para testar inovações. No entanto, a cliente de Fürst, empresa que atua com cartões de pagamento, segundo ele, está sendo multada como se fosse um plano de saúde.
O advogado diz que não vê, para casos como esse, a solução vindo de um controle via legislação ou através da criação de um órgão de concentração do controle de regulação, como acontece nos EUA.
“Sistemas de controles, quando adequadamente estabelecidos, se tornam importantes ferramentas para o funcionamento e credibilidade das instituições”, diz ele. “No caso das agências, no entanto, é preciso cuidar para que um sistema de controle dessa natureza não acabe por concentrar poder regulador, estrangulando a autonomia das agências, que é crucial ao seu funcionamento – como pudemos ver, por exemplo, na atuação da Anvisa na pandemia.”
Durante a pandemia de Covid-19 em 2020 e 2021, a Anvisa estabeleceu um regime de análise contínua, que permitiu que as empresas apresentassem dados de forma incremental e que acelerou o registro e aprovação de vacinas contra a Covid-19.
O período foi bastante emblemático do ponto de vista de disputas com o Legislativo. Em 2021, o Congresso conseguiu aprovar a Lei 14.124, que autorizava a importação e distribuição de medicamentos e insumos sem registro da Anvisa, desde que fossem validados por agências reguladoras internacionais, durante a pandemia.
No entanto, a Anvisa conseguiu manter autonomia para interpretar a legislação e continuou exigindo comprovação de segurança e eficácia, embora tenha passado a atuar de forma simplificada.
Segurança x liberdade
Para Guillermo Glassman, embora seja necessária a defesa de um espaço de discricionariedade técnica das agências, é preciso que esse espaço não seja indefinidamente amplo.
“Existe um conflito entre segurança e liberdade que precisa ser bem articulado”, diz Glassman, “No caso da Anvisa, que é onde eu mais atuo, existem produtos que de fato fazem mal à saúde e em determinadas circunstâncias deve pesar mais o entendimento técnico da agência”, diz ele. “Por outro lado, os membros do Congresso foram eleitos para tomar decisões de impacto social. E hoje qualquer pessoa consegue fumar um cigarro eletrônico, provavelmente as pessoas vão continuar fumando mesmo se proibido. Então não se pode ter uma postura radical, é preciso encontrar um equilíbrio.”
Glassman tem atuado diretamente no caso das multas na casa de dezenas de milhões de reais aplicadas pela Câmara de Regulação do Mercado de Medicamentos (CMED) às agências distribuidoras de medicamentos, que ele representa como presidente da Associação Brasileira de Fornecedores de Medicamentos (ABFMED). Embora não seja estritamente uma agência, a CMED é um órgão interministerial que atua de forma similar a uma. Ela regula o preço máximo de medicamentos e é composta majoritariamente pela Anvisa.
Há casos de autuações milionárias feitas pela CMED pela chamada “mera oferta”. São casos, por exemplo, de preços cadastrados preliminarmente em pregões eletrônicos, que podem depois ser alterados durante o processo de licitação.
“É comum as distribuidoras cadastrarem um preço e depois, durante o processo, isso ir diminuindo. Ainda assim, a CMED aplica como se houvesse tentativa dolosa de sobrepreço, mesmo sem venda efetiva ou prejuízo ao mercado”, argumenta Glassman, que afirma que o valor das multas — que chegam a ultrapassar os R$ 14 milhões — pode inviabilizar o trabalho das distribuidoras. Ele afirma que elas têm um papel importante em suprir mercados que a própria indústria farmacêutica, por razões logísticas ou comerciais, não atende diretamente.
“Elas são responsáveis por levar medicamentos a estados e municípios de todas as regiões, inclusive os mais distantes, garantindo capilaridade na distribuição”, afirma Glassman.
Esse é um caso no qual, defende o advogado, a atuação do Congresso poderia ajudar a trazer segurança jurídica através de um aprimoramento da lei de funcionamento da CMED, que tem apenas dez artigos.
Glassman afirma que a ABFMED tem atuado no Congresso e participado de reuniões técnicas com deputados e senadores para pedir ajuda com a situação. “Tentamos sensibilizar os legisladores sobre como ajustes regulatórios são urgentes para preservar a segurança jurídica e a continuação da atuação das distribuidoras, o que é fundamental para preservar o abastecimento de medicamentos no país”, diz ele.
A associação também tem atuado no Judiciário movendo ações para anular dispositivos da resolução da CMED de 2018 que estabeleceu altas penalidades para as empresas. A entidade defende também a criação de um programa setorial de regularização para renegociar débitos oriundos dessas autuações e, ao mesmo tempo, revisar as regras.
Para Nelson Albino Neto, sócio do EFCAN Advogados, a intervenção do Judiciário tem funcionado mais do que a do Congresso para pressionar as agências em casos específicos, como a questão da regulamentação da cannabis medicinal no Brasil, que ele acompanha.
A Anvisa foi pressionada pela concessão pela Justiça primeiro com a concessão de habeas corpus para que famílias pudessem cultivar a planta para o tratamento de crianças com epilepsia e depois por uma determinação direta para que a agência regulamentasse o tema.
O caso da cannabis, inclusive, é um episódio particular onde a própria Anvisa resolveu retornar para o Congresso Nacional a responsabilidade sobre o tema em diversas ocasiões. Quando publicou a resolução 327, de 2019, por exemplo, a agência afirmou que sua responsabilidade se restringe à regulamentação sanitária dos produtos e que o cultivo da planta, por estar ligado à Lei de Drogas (Lei nº 11.343/2006), é uma atribuição do Legislativo. É, segundo a visão de Roberta Simões Nascimento, o oposto da lógica de existência das agências em primeiro lugar.
“A existência das agências é uma escolha de delegação do legislativo, que vai além de uma necessidade de um olhar técnico sobre um tema, mas que também repassa a decisão sobre temas com os quais o Congresso não quer lidar ou cuja análise seria taxativa”, afirma ela.
Para Albino Neto, mais do que tratar de temas específicos, o Legislativo deveria atuar no aprimoramento da Lei da Anvisa, por exemplo, definindo prazos máximos para respostas e trabalhar para criar maior previsão orçamentária para o órgão. “Uma das grandes barreiras para análise no órgão, o que gera a demora tão grande na aprovação, é a falta de servidores”, diz ele.
“Sou a favor de que as agências, especialmente no caso da Anvisa, mantenham o seu poder de regulação dentro de um cenário jurídico que não lhe dê poder absoluto.”