O bom gasto público como agenda de reforma inadiável

O orçamento público corresponde ao principal instrumento de planejamento e execução das políticas públicas, onde se materializam as prioridades nacionais, que definem os rumos do desenvolvimento econômico e social do país. No Brasil, o orçamento tem sido progressivamente capturado por distorções institucionais, pressões de curto prazo e escolhas fragmentadas.

Segundo o Raio X Orçamento 2025 – PLOA, cerca de 90% das despesas primárias líquidas[1] do governo são despesas obrigatórias e apenas 10% são despesas discricionárias (incluindo as emendas). Despesas discricionárias são aquelas não obrigatórias por lei ou Constituição, em que o governo tem margem de escolha para decidir se vai gastar, quanto gastar e em que gastar.

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Do total discricionário estimado para 2025 de R$ 233 bilhões (aproximadamente 10% das despesas primárias líquidas), uma fatia de cerca 25% (R$ 60 bilhões) corresponde a emendas parlamentares diversas, restando apenas R$ 80 bilhões para investimentos diretos da União e R$ 166 bilhões para investimentos das estatais federais[2].

Foi nesse contexto que, em agosto de 2025, um grupo de 178 economistas, empresários e formuladores de políticas públicas lançou o Movimento Orçamento Bem Gasto, iniciativa que reúne nomes como Marcos Mendes, Helio Tollini, Felipe Salto, Persio Arida, Armínio Fraga, Elena Landau, Paulo Hartung, José Roberto Afonso, Zeina Latif, entre tantos outros.

O manifesto surge como um chamado à racionalidade fiscal e ao bom uso dos recursos públicos, denunciando a existência de distorções orçamentárias diversas, que abrangem inclusive os benefícios tributários e creditícios concedidos ao longo dos anos, sem adequada avaliação, e que consomem ao menos 6% do PIB.

O documento também alerta para a hipertrofia das emendas parlamentares, que já representam grande fatia da despesa não obrigatória, muitas vezes sem conexão com políticas públicas estruturadas, e para a escalada da dívida pública, hoje em 76% do PIB. Em síntese, a crítica central é que o gasto público brasileiro demanda não apenas contenção, mas sobretudo melhor direcionamento e avaliação de resultados.

A consolidação do orçamento impositivo, a partir das Emendas Constitucionais 86/2015, 100/2019 e 105/2019, alterou de forma profunda a dinâmica entre Executivo e Legislativo. Embora fortaleça o Legislativo, aumentando o controle social, fragmentou o orçamento, e, dificultou o planejamento estratégico de políticas públicas de longo prazo.

O modelo trouxe consigo uma consequência estrutural: a transformação do orçamento em um arranjo de base bottom-up, no qual a conjunção de interesses locais e setoriais frequentemente se sobrepõe à lógica do planejamento estratégico agregado, aumentando a rigidez orçamentária. Essa fragmentação contrasta com as boas práticas internacionais, que apontam para arranjos de top-down budgeting, em que o Parlamento define limites e prioridades gerais, mas cabe ao Executivo a responsabilidade de detalhar a execução com base em critérios técnicos e planos estratégicos de médio e longo prazo.

Esse contraste é ressaltado pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) em sua Recommendation on Budgetary Governance (2015), que define que o orçamento deve refletir prioridades nacionais claras, coordenar políticas intersetoriais, preservar flexibilidade para lidar com crises e assegurar transparência, responsabilização e prestação de contas (accountability).

Em diversos países da OCDE e da União Europeia, como Suécia, Noruega e Reino Unido, prevalecem modelos de top-down budgeting, nos quais o Parlamento exerce forte accountability, mas preserva-se ao Executivo a responsabilidade pela execução e detalhamento da alocação de recursos.

As recomendações do Fundo Monetário Internacional, em especial o relatório Well Spent: How Strong Infrastructure Governance Can End Waste in Public Investment (2022), reforçam essa orientação, ao enfatizar que a eficiência do gasto público não depende apenas do montante investido, mas da qualidade da Governança.

Isso significa avaliar sistematicamente projetos e subsídios antes de sua implementação, fortalecer instituições fiscais independentes capazes de identificar distorções e ampliar mecanismos de transparência e participação social. O recado é claro: países que não estruturam seu orçamento de forma estratégica tendem a desperdiçar recursos e reduzir a efetividade de suas políticas públicas.

No Brasil, é importante reconhecer que já existem instrumentos institucionais capazes de contribuir para essa agenda. O principal exemplo é o Comitê de Monitoramento e Avaliação de Políticas Públicas (CMAP), criado em 2019 e coordenado pelo Ministério do Planejamento e Orçamento (MPO)

O CMAP representa um avanço institucional ao introduzir avaliações baseadas em evidências de programas federais e subsídios, acumulando diagnósticos técnicos relevantes. No entanto, seu escopo é limitado e tem se restringido à avaliação, sem alcançar o estágio de uma verdadeira revisão de gastos, como recomendado pela OECD em seu Spending Review Framework (2019). Trata-se, portanto, de um passo importante, mas que fica aquém daquilo que seria necessário para efetivar cortes, realocações e escolhas orçamentárias vinculantes.

Nas boas práticas internacionais, sobretudo da OCDE e do FMI, o Marco Orçamentário de Médio Prazo (Medium-Term Expenditure Framework) é tratado como a espinha dorsal do ciclo orçamentário, que conecta planejamento (definição de prioridades estratégicas plurianuais), execução (elaboração anual do orçamento em conformidade) e avaliação (monitoramento e revisão periódica para ajustar políticas).

No Brasil, as iniciativas semelhantes ainda carecem do caráter vinculante típico, funcionando mais como um instrumento de planejamento complementar (relatórios e cenários), sem força normativa plena sobre a execução orçamentária, conforme apontado por estudo do IPEA.

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O Movimento Orçamento Bem Gasto denuncia essas distorções e propõe reformas na direção das melhores práticas internacionais. A agenda do bom gasto público é, antes de tudo, uma agenda de governança democrática: significa devolver à sociedade a capacidade de acompanhar, avaliar e exigir resultados das escolhas orçamentárias. Significa, também, fortalecer instituições de avaliação e garantir que o orçamento volte a ser um instrumento de planejamento nacional.

O desafio brasileiro não é apenas fiscal. Não basta perseguir superávits ou estabilizar a dívida pública. É preciso reconstruir a governança do orçamento e realinhar o processo orçamentário aos princípios consagrados das boas práticas internacionais.

Isso implica fortalecer instituições como o CMAP, dar escala às iniciativas de avaliação do MPO, rever o desenho do orçamento impositivo e adotar avaliações de impacto como pré-condição para concessão de benefícios tributários e creditícios. Implica, sobretudo, reconhecer que a verdadeira justiça social não se faz apenas pela expansão de gastos, mas pelo gasto eficiente, transparente e alinhado a prioridades nacionais.

[1] Todos os gastos do governo que não incluem o pagamento de juros ou amortização da dívida pública nem transferências a estados e municípios. Envolvem o custeio da máquina pública (salários, manutenção, investimentos, políticas públicas, benefícios sociais, previdência, saúde, educação).

[2]O montante apresentado excede o total, em virtude da agregação de receitas das próprias empresas estatais.

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