A República do Equador experimenta uma crise institucional manifestada através do antagonismo entre o Poder Executivo, chefiado pelo presidente Daniel Noboa, e a Corte Constitucional. Este conflito transcende a divergência política, configurando uma ameaça aos fundamentos da separação dos Poderes própria das democracias constitucionais, com clara afronta ao princípio da independência judicial.
O epicentro da controvérsia reside na decisão da corte de suspender cautelarmente, com fundamento no artigo 79 da Lei Orgânica de Garantias Jurisdicionais, 17 dispositivos de três leis: Solidariedade Nacional, Integridade Pública e Inteligência. Esta medida, fundamentada na identificação de riscos de inconstitucionalidade, desencadeou reação governamental caracterizada pela tentativa de deslegitimação da jurisdição constitucional através de narrativas securitárias.
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Alguns aspectos de tais leis precisam ser brevemente referidos, ainda que o espaço seja curto.
A Lei de Solidariedade Nacional apresenta o instituto do “indulto antecipado” para forças de segurança, em seu artigo 14, permitindo que , em caso de conflito armado interno reconhecido pelo Executivo, o presidente possa conferir, antecipadamente, tais indultos por “razones humanitarias o de interés público excepcional a personas procesadas penalmente por hechos relacionados con dicho conflito”, ou seja, sem nem mesmo analisar, caso o caso, o ocorrido, em clara violação à jurisprudência consolidada da Corte Interamericana sobre indultos e anistias, iniciada em Barrios Altos[1] e reafirmada, entre outros, em Gelman[2], Gomes Lund[3] e Herzog[4].
A Lei de Integridade Pública, espécie de “Ley Omnibus”, trouxe uma porção de jabutis, pois, concebida para tratar dos temas da contratação pública e dos servidores públicos, acabou por conter outras questões ligadas a reformas penais, judiciais e trabalhistas, recebendo trinta demandas de inconstitucionalidade para solução da Corte Constitucional.
Já a Lei de Inteligência autoriza práticas de vigilância sem controle judicial adequado, violando direitos à intimidade e proteção de dados, como a possibilidade de interceptação sem ordem judicial.
Como resposta às decisões judiciais, o governo convocou a Marcha de 12 de Agosto, de modo a intimidar a corte, quando se fez uso da exibição dos rostos dos magistrados com mensagens estigmatizantes (“estes são os juízes que estão roubando a nossa paz”), de modo a pressionar, politicamente, os magistrados.[5]
Tudo isso como parte de uma narrativa em prol da segurança pública, em que os direitos fundamentais se tornam aparato contrário à proteção da integridade do povo equatoriano.
Nessa esteira, vem a nova investida governamental, que diz respeito à realização de uma consulta popular para eliminar a proibição de juízo político (impeachment) contra magistrados constitucionais. Trata-se de mais um expediente conhecido de captura judicial, desta vez usando da necessidade de se superar o artigo 431 da Constituição que estabelece regime especial de proteção dos juízes contra pressões políticas.
Tal narrativa, ademais de antidemocrática, é falsa, tendo em vista que a própria Constituição do Equador prevê, em seu artigo 431, a responsabilidade civil, penal e administrativa dos juízes constitucionais. Em caso de ilíticos disciplinares ou administrativos, ainda existe a possibilidade de destituição pelos próprios membros da Corte Constitucional[6].
Tais fatos levantaram alerta para a comunidade internacional, com manifestações do Escritório do Alto Comissariado da ONU para os Direitos Humanos, da relatora das Nações Unidas para a independência de magistrados, da Anistia Internacional e da Human Rights Watch.
A mais recente, da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, de 29 de agosto, afirma que o trabalho dos que estão no sistema de justiça “é fundamental tanto para garantir os direitos humanos como para proteger o sistema democrático contra possíveis abusos dos próprios governos, representantes eleitos e grupos de poder económico ou de outra natureza”, devendo o Equador “assegurar o livre desempenho da função da Corte Constitucional e garantir a segurança e a integridade das pessoas que atuam na justiça, incluindo aquelas responsáveis pela verificação do cumprimento dos padrões de direitos humanos nas leis de aplicação geral[7]”.
Não se pode olvidar que se está a tratar de tema central para o Estado democrático de Direito. A independência judicial de uma corte se refere, por um lado, à sua capacidade de agir de forma autônoma e de impor suas decisões, e, por outro, aos dispositivos institucionais que asseguram sua estabilidade e garantem que ela continue decidindo conforme seus próprios critérios.[8]
No plano internacional, os Comentários aos Princípios de Bangalore de Conduta Judicial afirmam que a independência judicial depende de (i) garantia de estabilidade, entendida como estabilidade no cargo; (ii) segurança financeira, compreendida como a impossibilidade de interferência no salário dos juízes; e (iii) independência institucional, representando a aptidão de o Judiciário ser institucionalmente independente.[9]
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Pelo que se vê, o caso equatoriano mostra um Poder Executivo em busca de capturar o Judiciário mediante a diminuição da autonomia de uma corte, para diminuir os poderes decisórios e remover as garantias de estabilidade de modo a controlar a Corte Constitucional e seus juízes, inclusive mediante a chantagem institucional de fazer aprovar um novo modelo de impeachment de juízes, com a alteração nas condições de estabilidade e de produção de mecanismos de controle das decisões judiciais.
Nunca é demais lembrar que a situação afirmada vem de encontro com a história constitucional recente do Equador em que a remoção de juízes independentes e o fechamento da Corte Constitucional foram alvo de duas condenações internacionais por parte da Corte IDH[10]–[11], que também condenou Honduras em caso com bases fáticas semelhantes[12].
Ao final, depois dos recentes casos de México, El Salvador, Venezuela e Nicarágua, acende mais alerta sobre a atualidade dos anseios antidemocráticos manifestados por líderes políticos latino-americanos. Os recentes passos ladeando a nova fase do presidencialismo norte-americano, vistos recentemente, mostram uma tendência muito acentuada no continente de controle e captura de juízes, singularmente, e do Judiciário, como instituição.
[1] https://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_75_esp.pdf
[2] https://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_221_esp1.pdf
[3] https://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_219_por.pdf
[4] https://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_353_esp.pdf
[5] https://www.primicias.ec/politica/polemicas-leyes-gobierno-audiencias-publicas-corte-constitucional-103533/
[6] https://dplf.org/debilitar-la-justicia-ofensiva-del-ejecutivo-contra-la-corte-constitucional-ecuador-2025/
[7]https://www.oas.org/es/CIDH/jsForm/?File=/es/cidh/prensa/comunicados/2025/175.asp&utm_content=country-ecu&utm_term=class-mon
[8] Para mais: RÍOS-FIGUEROA, Julio. Judicial Independence: definition, measurement, and its effects on corruption. an analysis of latin america. 2006. Tese (Doutorado) Philosophy, Department Of Politics, New York University, New York, 2006.
[9] Nações Unidas (ONU). Escritório Contra Drogas e Crime (Unodc). Comentários aos Princípios de Bangalore de Conduta Judicial / Escritório Contra Drogas e Crime ; tradução de Marlon da Silva Malha, Ariane Emílio Kloth. – Brasília : Conselho da Justiça Federal, 2008, pp. 47-48.
[10] https://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_266_esp.pdf
[11] https://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_268_esp.pdf
[12] https://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_514_esp.pdf